Nas: Duas Décadas em Samples e Versos de Seu Maior Disco

“Illmatic” completa 20 anos de idade; um marco para o Hip Hop como viríamos a conhecer posteriormente

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Aniversários muitas vezes realçam mais do que somente a passagem do tempo, celebram em alguns casos a importância do nascimento do novo e do revolucionário. Duas décadas depois de seu lançamento, Illmatic ainda é um dos melhores discos de Hip Hop já feitos, uma obra que viria a modelar o estilo que se encontrava na adolescência, aquele período em que descobertas são acompanhadas de incertezas e qualquer decisão parece ser eterna. Alguns elementos denotam a grandiosidade e a importância do álbum feito pelo jovem Nas, que na época de seu debut esbanjava seus poucos 20 anos.

O trabalho é muitas vezes conhecido como uma ponte para os novos tempos do Rap da Costa Leste dos EUA. No início dos anos 1990, as vendas e os artistas mais importantes estavam situados na Costa oposta, Oeste. Seja por Snoop Dogg ou Dr. Dre, a região ensolarada da Califórnia era o celeiro de riqueza e sucesso, fato que dificultaria a aceitação de Nas nos selos da época. “Ótimo, mas pouco vendável” era umas frases seguidamente escutadas pelo rapper que inevitavelmente acabou conseguindo lançar o seu disco pela Columbia e o resto é história. Cheio de samples de Jazz e Blues, letras que retratam o cotidiano de um negro que vivia nos conjuntos habitacionais ao redor da Queensbridge, ponte que ligava diretamente Manhattan a um dos cincos bairros/regiões principais de Nova York, o Queens. Tanta vivência reflete-se em versos crônicos, mas que ganham corpo no jeito suave do músico se apresentar diante de suas batidas.

Tal estilo, o chamado jazz flow, não era novidade nenhuma em 1994, mas trazia de novo os olhares atentos ao epicentro do gênero Jazz, disseminado entre as décadas de 1940 e 1950. Vemos como outros rappers viriam a se apropriar da influência de Nas posteriormente, como Jay-Z e Notorious B.I.G. Desta vez, ao invés de analisarmos cada faixa, algo usual em nossas “comemorações de aniversário”, preferimos separar alguns samples utilizados nas faixas, assim como denotar frases marcantes do disco que, quando escutadas a primeira vez, dificilmente sairão da sua cabeça.

A abertura Genesis, não poderia ter construção mais adequada ao título que denota “criação”. A de Nas vem de alguns pontos: o barulho do trem, linha férrea acompanhante da ponte que levava ao seu conjunto habitacional, que abre a faixa como se levasse o ouvinte ao seu habitat. Versos de uma participação do músico em uma canção do Main Source, Live at the Barbaque, são o convite ao seu ofício, enquanto trechos sampleados do seminal filme sobre Hip Hop Wild Style são abertura ao seu meio. Curta, abre caminho para um dos hinos do gênero, NY State of Mind.

O estado de mente que o rapper relaciona à sua cidade nada mais é do que um retrato sobre como é viver em um local à parte da sociedade e de sua cidade, uma comunidade marginalizada e restrita ao modo de vida de seus habitantes. Samples de guitarra em loop de Flight Time, de Donald Byrd, abrem espaço para o groove de piano de Mind Rain, de Joe Chamber. A descrição de como é viver no gueto é devastadora: “It’s like the game ain’t the same/Got younger niggas pulling the triggers bringing fame to their name/And claim some cornersCrews without guns are goners”.

Sobre letras, Life’s a Bitch é considerada por muitos como a faixa mais triste de Hip Hop já feita. Concentrada nas mazelas da vida, justifica o uso constante de drogas à fugacidade da mesma, porque “nunca se sabe quando você irá embora”, claramente relacionada ao número de corpos que se acumulavam no gueto em que vivia. “Life’s a bitch and then you die/That’s why we get high/Cause you never know when you’re gonna go” culmina com um brilhante trompete sendo tocado pelo pai do rapper, Olu Dara. A letárgica música é paradoxal, pois, ao mesmo tempo em que nos atenta ao imediatismo da vida, não se propõe em ser rápida, jogando bem devagar com sua atmosfera lenta, esfumaçada.

Percebemos poucas falhas ao longo de todo disco e somente momentos marcantes como a dobradinha que coloca a violência urbana de lado: The World Is Yours e Halftime, ambas com batidas funkeadas, dançantes e um clima mais aberto e alegre. No entanto, o cheiro de nostalgia é sentido de longe na linda, Memory Lane( Sittin’ in da Park) que mostra quem é Nas diante de um maravilhoso sample de Ruben Wilson e sua We’re in Love: habitante das ruas que viu companheiros morrerem subitamente. “Poetry, that’s a part of me, retardedly bop /I drop the ancient manifested hip-hop, straight off the block /I reminisce on park jams, my man was shot for his sheep coat/Childhood lesson made me see him drop in my weed smoke”.

Enquanto isso, escutamos One Love, música que denota o virtuosimo do músico ao praticamente cantar a faixa inteira sem pausa alguma, a sua famosa fome por versos, com samples de bateria de nada mesmo que o Parliament e sua Come Out of The Rain. A abrangência além de seus próprios meios se mostra com as consequências que Represent trouxe a outros artistas. A tensa canção, com sons de armas sendo engatilhadas e contos sobre fugas policiais, surgiu de um obscuro filme da década de 1920, Thief of Baghad. Depois, viria a ganhar forma nos versos que foram disseminados por Orishas e seu hit Represent Cuba, mostrando que a ponte de som de Nas alcançaria lugares ainda mais distantes.

Se por acaso você já teve a chance de conhecer Nova York ao vivo, ou mesmo em seus milhares de filmes e séries que retratam a cidade, saiba que poucos discos conseguem reproduzir a sensação de percorrer os ambientes não tão amigáveis assim da metrópole. Após seu lançamento, Illmatic viria a não só refrescar os ares no Hip Hop da Costa Leste ao lançar um disco de um iniciante e quebrar o domínio californiano na música, mas também a mudar os paradigmas de produção como um todo. Anteriormente, era comum que um artista se conectasse a um produtor somente para trazer coesão ao seu trabalho, no entanto, Nas se viu auxiliado por nomes como Q-Tip, DJ Premier, Large Professor e Pete Rock, algo que foi reproduzido em larga escala no estilo.

Atualmente, dificilmente vemos um disco atrelado a somente um produtor e Illmatic foi responsável por mostrar que outros olhares são bem-vindos e não diminuem a unidade de um álbum. Um trabalho se mostra representativo quando duas décadas depois cativa tanto os ouvintes antigos quanto os novos e, se você quer ter uma lição do que é Hip Hop da Costa Leste, famoso por beber de suas fontes históricas musicais, saiba que este disco é um bom ponto de partida.

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ARTISTA: Nas
MARCADORES: Aniversário

Autor:

Economista musical, viciado em games, filmes, astrofísica e arte em geral.