Cadê – Ira! – Clandestino (1990)

Disco mostra o começo do declínio criativo da banda

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O quarto disco de Ira! entrou para a história como portador dos primeiros indícios de esgotamento da capacidade criativa do quarteto paulista. Era comum a crítica especializada da época entender que as mudanças estéticas decorrentes do amadurecimento dos artistas da década como perda de qualidade. O tempo, no entanto, fez com que essas alterações fossem melhor compreendidas. Ira!, por exemplo, nunca foi uma banda de projeção Pop nacional como eram Paralamas Do Sucesso, Titãs ou Legião Urbana. Seu discurso dos subúrbios paulistanos, sua paixão por bandas enguitarradas como The Who e The Jam eram elementos que, por um lado, abriam espaço entre os fãs de sonoridades mais pesadas e diretas, impediam o surgimento de fãs adolescentes em profusão. Os quatro integrantes – Nasi, Edgard Scandurra, Rogério Gaspa e André Jung – também não eram exatamente galãs. Ira! era gente como a gente.

O momento de maior popularidade do grupo viera em 1987, quando emplacou Flores Em Você na abertura da novela global O Outro. O arranjo de cordas da canção mascarava as guitarras do segundo disco, Vivendo E Não Aprendendo, que trazia hits radiofônicos como Envelheço Na Cidade, Pobre Paulista e Gritos Na Multidão. O disco seguinte, Psicoacústica, lançado em 1988, marcou uma guinada rumo a sonoridades mais pesadas, uso de elementos eletrônicos e letras mais herméticas. As guitarras de Scandurra também foram colocadas na linha de frente, restando apenas a Receita Pra Se Fazer Um Herói o posto de hit nas rádios, mesmo assim, em proporção inferior às canções do trabalho anterior. Clandestino chegaria cerca de um ano e meio depois, ainda na turbulência do lançamento do primeiro trabalho solo de Edgard, Amigos Invisíveis, de 1989, no qual ele usara grande parte das composições que fizera recentemente, deixando o Ira! em segundo plano, o que foi notado por todos quando começaram a reunir repertório para o novo álbum. A solução foi buscar músicas antigas como Nasci em 62, O Dia, a Semana, o Mês e a faixa título, todas reempacotadas e credenciadas para o novo trabalho.

Seguindo a inspiração cinematográfica do disco anterior, Clandestino abre com Melissa, de Scandurra, Nasi e Gaspa, com a participação do ator Paulo Villaça, que estrelara O Bandido Da Luz Vermelha, filme de Rogério Sganzerla. Villaça surge recitando versos em meio a uma sonoridade psicodélica com efeitos de teclados, ruídos e berimbau. O sucesso radiofônico do álbum vem em seguida: Tarde Vazia, balada com mudança de andamento, cheia de passagens visuais e melodia triste. O contraste com a canção seguinte, Efeito Bumerangue é enorme. Guitarras de Hard Rock impulsionam a melodia, com vocais intencionalmente soterrados de Nasi e bom trabalho da cozinha Gaspa/Jung. A Psicodelia sessentista de Boneca de Cera, belezura de balada tristonha, surge em novo contraste, preparando o terreno para a faixa mais estranha de Clandestino, que é Cabeças Quentes, um exemplar torto e esquisito de Samba Rock, soturno e escuro, que foi massacrado nas resenhas da época.

O Rock setentista volta com tudo em O Dia, a Semana, o Mês, com riffs clássicos e andamento cadenciado, com vocais típicos de Nasi nos primeiros tempos de Ira!. Patroa, a canção seguinte, é menos inspirada, enquanto Consciência Limpa traz abertura com samples diversos, que desemboca na progressão clássica de guitarras de Scandurra, com melodia que parece iniciar um autoplágio de Pobre Paulista, mas sai pela tangente. A faixa título traz mais guitarras pesadas emoldurando letras sobre desespero e desejo de liberdade, típicas do período que antecedeu a posse de Fernando Collor na presidência da república. Nasci em 62 é a décima e última canção do disco, trazendo sample do noticiário Reporter Esso em meio a letra raivosa, levada rápida e aerodinâmica.

Ira! realmente iniciaria um período de decadência após Clandestino, muito mais por conta da própria conjuntura histórica de mudança, além do esgotamento do cenário propício que havia no país nos anos 1980, com grande recessão no início da década seguinte. Além disso, a chegada da MTV no Brasil influenciaria no surgimento de artistas mais relacionados à música feita no país, como Chico Science e Mundo Livre S/A, entre outros. Formações mais tradicionais e inspiradas em matrizes gringas – caso de Ira! – tendiam ao ocaso. Mesmo assim, Clandestino é um disco muito mais interessante do que as análises da época faziam supor. Ele foi reeditado em CD no início dos anos 2000 na série Arquivos Warner, mas está fora de catálogo. Pode ser encontrado em sites de venda e compra por valores próximos a R$ 180,00 a R$345,00.

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ARTISTA: Ira!
MARCADORES: Cadê?

Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.