R.E.M. – Do Fundo do Baú

Acústicos gravados pela banda contam sua carreira e revelam suas maiores qualidades

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Em 21 de setembro de 2011, R.E.M. pendurava as chuteiras. Foram mais de trinta anos de carreira, quinze discos e cerca de 85 milhões de álbuns vendidos ao redor do mundo, além da certeza que a banda cravou seu nome na história. Desde então, em doses homeopáticas, surgem lançamentos que cumprem a missão de prover o mais detalhado retrato do grupo, encantando fãs desamparados e cativando novíssimos admiradores. Desta vez, quase ao mesmo tempo, chegam ao mercado três lançamentos irresistíveis. A Rhino Records coloca nas lojas The Complete Unplugged Sessions, contendo a totalidade das duas apresentações que R.E.M. fez no famoso programa da MTV, cujo principal atrativo era propor que formações e artistas desligassem amplificadores e instrumentos elétricos para relerem suas obras. O grupo foi o único artista a se apresentar duas vezes no programa. Os outros dois lançamentos são digitais e cobrem toda a carreira do conjunto em 181 faixas, agrupadas em The Complete Rarities IRS (1982-1987) e Complete Rarities Warner (1988-2011). Um banquete, convenhamos.

Os acústicos do grupo são dois shows bem distintos e mostram o máximo de diferença que uma banda pode exibir, sem que haja alguma perda de integridade ou personalidade. Explico. Em 1991, o então quarteto da Georgia, baluarte do Rock independente americano, após dez anos de militância nas rádios universitárias, flertando com postos em paradas de álbuns independentes e habitante convicto do subterrâneo, girava a maçaneta da porta do céu. Em seu segundo disco pela Warner, Out Of Time, lançado naquele ano, R.E.M. obtinha seu maior sucesso com Losing My Religion, que galgara todos os degraus possíveis em todas as paradas do planeta. A canção tocava em toda parte, seu clipe era exibido várias vezes ao dia na MTV e tudo indicava que o grupo adentrara o hall do megaestrelato Pop. E tudo isso era verdade. Como um contraponto interessante ao estouro Grunge, o sucesso da banda promoveu uma oxigenada nas paradas Pop, inclusive no Brasil, que experimentava seu primeiro ano de MTV. A canção foi o grande sucesso dos primeiros tempos da emissora por essas bandas, ao lado de Smells Like Teen Spirit (Nirvana). Losing My Religion foi tão bem sucedida que eclipsou o próprio Out Of Time, um bom disco, mas que mostrava um R.E.M. ainda sem muita ideia de como se comportar diante do mundo, sob contrato assinado com a Warner. O disco anterior, primeiro da banda pra a nova gravadora, Green, era ainda muito próximo dos tempos de independência na pequena IRS.

Na esteira desse momento, R.E.M. foi convidado para estrelar o programa Unplugged. Na época, era comum que as apresentações surgissem tempos depois em forma de disco. Não aconteceu com R.E.M. e seu acústico (assim como Pearl Jam) permaneceu alvo de pirataria e cópias com péssima qualidade de som até agora. A aparição de 1991 é luminosa, ainda que padeça de alguns problemas. Como já dissemos, era um momento de transição na carreira do grupo, que aparecia muito imerso no clima de música para acampamento, algo que poderia acontecer se a banda não soubesse dosar a simplicidade do programa com sua própria capacidade de soar elétrica. R.E.M. sempre foi uma banda explosiva no palco e aparecia muito contido. Mesmo assim, há momentos interessantes em grande quantidade. A versão desplugada de It’s The End Of The World As We Know It (And I Feel Fine) é um triunfo de improviso e reinvenção, trazendo um esforço enorme e coletivo na intenção de desacelerar o rapidíssimo original, de 1987. Fall On Me, uma das mais tristes canções do repertório da banda, também surge recriada e com ênfase renovada nos vocais de Michael Stipe. Ao lado delas, canções mais novas, como Pop Song 89, Radio Song (em versão sem o rap de KRS-One, contido em seu original) e a própria Losing My Religion confirmam a transição que caracterizava o REM em 1991. Esta superexposição fez com que o grupo buscasse tonalidades mais cinzentas no álbum seguinte, Automatic For The People, a ser lançado no ano seguinte. Em busca de sua identidade – que seria reforçada a partir do trabalho seguinte -, REM valeu-se desta noção de alteridade, de busca por algo diametralmente oposto. Essa inquietação aparece de alguma forma nessa primeira visita da banda ao Unplugged MTV.

Corta para 2001. O mundo é outro, a vida é outra. Não há mais Kurt Cobain nem Torres Gêmeas. O fax não é o máximo em comunicação à distância, os computadores invadiram os lares, a globalização falhou. R.E.M. tampouco é o quarteto original que se formara em Athens, Georgia, em 1980. Vítima de aneurisma, o baterista Bill Berry deixara a banda em 1996 após ver-se impossibilitado de levar adiante a vida na estrada e nos estúdios. É preciso dizer que o conjunto foi ferido de morte a partir desse momento e que, mesmo capaz de se reinventar como banda, jamais foi o mesmo desde então. Além de companheiros de grupo, Bill Berry, Michael Stipe, Peter Buck e Mike Mills sempre foram amigos e funcionaram como partes complementares. A banda acaba de lançar o segundo disco de inéditas após a saída de Berry, Reveal, que foi puxado pelo sucesso de Imitation Of Life, primeiro single do álbum, com alguns aspectos semelhantes à Losing My Religion. Este e o trabalho anterior, Up, de 1999, mostram o trio remanescente acudido por músicos convidados (o sensacional trio formado por Joey Waronker, Ken Stringfellow e Scott McCaughey) e às voltas com uma sonoridade curiosamente mais exuberante que o habitual. R.E.M. deixava de lado sua versão personalíssima do Rock, algo que poderíamos chamar às vezes de Punk Folk em benefício de um Pop quase barroco, tamanhos os detalhes sonoros e riqueza dos arranjos. Em algum lugar lá embaixo do som, estavam os três remanescentes, íntegros, procurando conter a ausência do parceiro e amigo.

Com o sucesso de Imitation Of Life e a boa recepção de Reveal junto à crítica, surgiu o novo convite para o Unplugged. O próprio programa já se encontrava enfraquecido na grade da emissora e R.E.M. surgia como uma atração de renome. Podemos dizer que esta segunda aparição é mais interessante que a anterior. A banda não mais busca identidade, apesar de viver um novo momento de transição, ou melhor, adaptação, que vai caracterizar os trabalhos seguintes do grupo até o encerramento de suas atividades. Novamente há um grande número de canções novas, já com a abertura trazendo All The Way To Reno, que já se insinuava como segundo sucesso de Reveal. Logo após vem Electrolite, música luminosa do último disco com Bill Berry, New Adventures In Hi-Fi, de 1996. At My Most Beautiful (outra de Reveal) e Daysleeper (único sucesso de Up, 1999) dão as caras em versões que não deixam nada a dever a seus originais. O primeiro clássico de outras épocas, So.Central Rain, do longínquo álbum Reckoning, de 1984, também surge com energias renovadas. Losing My Religion e Country Feedback, duas canções de Out Of Time, ressurgem já nacondição de clássicos da carreira da banda, a primeira, como seu maior sucesso e a segunda, como uma daquelas obscuridades que todo disco possui, privilégio de poucos, tesouro só dos fãs mais renitentes. Mais exuberante e capaz de um espectro sonoro maior, a versão 3 + 3 do REM 2001 é interessante e competente.

Outros dez anos se passam e vemos a banda encerrar suas atividades, conforme dissemos no primeiro parágrafo. Terminou sem brigas, sem problemas com drogas, sem conflito de egos, “por cima”, como costumamos dizer. Pouco tempo depois, R.E.M. lançou uma coletânea chamada Part Lies, Part Heart, Part Truth, Part Garbage, cobrindo toda a carreira, privilegiando os maiores sucessos e agora, após The Complete Unplugged Sessions, solta dois lançamentos para deixar os fãs enlouquecidos. O lançamento de Complete Rarities IRS traz para a luz o período independente da banda, entre 1982 e 1987. Dentre as 50 faixas, a primeira coletânea de sobras de estúdio e faixas obscuras do grupo, Dead Letter Office, está presente em sua totalidade, mas com o furo de não incluir (como incluía a versão original em CD) o primeiríssimo EP da banda, Chronic Town, de 1981. Ainda que seja motivo de celebração, os fãs mais atentos da banda não vão encontrar nada de muito relevante, uma vez que a versão em CD duplo And I Feel Fine, coletânea deste período, lançada em 2006 já continha muitas dessas versões alternativas, bem como as edições comemorativas de aniversário dos primeiros discos da banda, Murmur, Reckoning, Fables Of Reconstruction, Life’s Reach Pageant e Document, todas lançadas ao longo dos anos 2000. Já Complete Rarities Warner traz, senhoras e senhores, o proverbial mapa da mina. É o período que antecede e mostra o REM no estrelato, lidando com sua busca por identidade, superando perdas e procurando se reinventar a cada disco. São lados-B de singles, instrumentais, remixes, sobras de estúdio, versões alternativas, registros ao vivo, todos pinçados dos anos 1990 e 2000, de valor praticamente inestimável. São 131 faixas, todas devidamente inseridas em seus contextos e capazes de fotografar a banda ao longo dos anos, servindo como contraponto perfeito aos álbuns. O lançamento nos faz pensar se haverá motivo para edições comemorativas dos discos lançados pela Warner, de Green em diante. Entre esses álbuns, pelo menos Automatic For The People e New Adventures In Hi-Fi são favoritos entre os fãs.

Stipe, Buck e Mills se disseram aliviados com o fim do grupo em 2011. Já pareciam se repetir em disco, insinuando uma burocratização da obra da banda, o que seria lamentável. Terminaram por cima mesmo, ainda com lenha para queimar. Quem sabe o futuro não reserva algum retorno? Íntegros que são, resta aos fãs de R.E.M. a certeza de que, caso isso aconteça, será em grande estilo.

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ARTISTA: R.E.M.
MARCADORES: Redescobertas

Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.