Você Precisa Conhecer Clube da Esquina

Grupo de Milton Nascimento e Lô Borges encontra um lugar na história que se reflete até hoje

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Em 1972, era lançado um dos grandes discos de música brasileira de todos os tempos. Um álbum duplo, colaborativo, trazendo um cantor/compositor consagrado e um jovem guitarrista, cantor e compositor de 19 anos, ambos à frente de um grupo de músicos do mais alto nível. Milton Nascimento e Lô Borges conseguiram sintetizar vivências, sentimentos, crítica política, influências, música daqui, música de lá, tudo ao mesmo tempo, conjunto de detalhes e nuances que só poderiam existir neste tempo e lugar. É desses discos que captam o espírito da época (o tal do zeitgeist) e o encapsulam em forma de música. Essencial é pouco.

Tornou-se consenso no Brasil que a Tropicália foi o grande evento artístico recente da nossa história. De fato, o movimento cultural iniciado em fins da década de 1960 repetiu uma lógica cíclica ao cenário brasileiro, traduzida pela necessidade de lembrar ao povo e aos artistas do país que ele está inserido no mundo, que há outras culturas, outras influências e que, na maioria das vezes, evitar misturas e novas abordagens é manter as coisas correndo em círculo. Os alunos de História vão lembrar da Semana de Arte Moderna de 1922, quando a mesma noção foi posta em prática. A Tropicália era a tentativa de trazer influências externas para a nossa realidade, misturar guitarras beatle com samba, psicodelia com marchinha de carnaval, rumba com batucada. Nas artes plásticas, no cinema, na literatura, na música, a Tropicália foi a tomada de posição contra a maioria dos símbolos da caretice e do retrocesso. Não só os tropicalistas tiveram tal mérito, convém notar.

A Bossa Nova também foi um movimento de abertura ao exterior. No caso, o Jazz americano adentrou nossos ensolarados domingos à beira mar para modificar a música feita aqui, contida em ritmos o Samba e o Samba Canção, para torná-la mais plural, mais nova. A Bossa Nova foi algo novo, antes dela, não havia convenção que comportasse uma voz como a de João Gilberto conduzindo uma canção. Ou um violão como o dele, pontuando uma melodia, progredindo acordes. Ou o piano de Tom Jobim misturando influências dos compositores franceses impressionistas (Ravel, Debussy) à música mais popular feita por esses lados. Como a Tropicália, a produção desse pessoal litorâneo ficou restrita aos setores mais altos e instruídos da pirâmide sócio-cultural brasileira daqueles anos 1960. Outro movimento foi mais democrático: a Jovem Guarda.

Sob a influência do Rock e de sua versão dada por The Beatles e demais companheiros de Invasão Britânica, a Jovem Guarda foi o fenômeno mais popular em termos de música naquela década. Ídolos como Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Eduardo Araújo, Wanderleia, grupos como Renato e Seus Blue Caps, os Incríveis, entre tantos outros, tomaram de assalto a nascente televisão e os corações das meninas brasileiras. As canções produzidas e interpretadas por eles fizeram a delícia das camadas mais populares das cidades, possibilitando o surgimento da chamada canção romântica, a partir do fim dos anos 1960, quando estes artistas começaram a se aproximar dos 30 anos de idade e passaram a buscar algo de novo e mais maduro em suas carreiras. Em meio a este cenário, ainda havia uma quarta via, discreta, sorrateira, surgindo na improvável capital mineira.

Era uma música proveniente das diversas experiências e vivências numa cidade que ainda não era uma metrópole, guardando muito da camaradagem e ambiência do interior. Belo Horizonte era bem menor que Rio e São Paulo, possuía algumas tradições musicais diferentes, muita influência de música sacra, além da profusão de conjuntos de bailes, possibilitando a existência de uma certa democracia musical, Milton Nascimento e Wagner Tiso, contemporâneos, tocaram juntos num desses grupos especializados em fornecer música para festas. Valia tudo, desde hits radiofônicos como sambas-canção, marchas, canções da Bossa Nova, o repertório dessas noitadas festivas era infinito. Milton mudou-se para Belo Horizonte em 1963/64 e foi morar numa pensão, próxima ao famoso Edifício Levy, no centro da cidade. Lá moravam os irmãos Borges, mas o recém-chegado fez mais amizade com Márcio Borges, que se tornou um letrista de grande importância para as primeiras composições da carreira de Milton. Aos poucos, um grupo de amigos foi se formando em torno das reuniões musicais na casa dos Borges. Outros irmãos, como Marilton e Salomão (Lô) se juntavam aos boêmios, mas ainda eram muito jovens para cair na estrada.

Até 1970, Milton lançaria quatro álbuns e se tornaria famoso em todo o país por conta do sucesso de canções como Travessia, Canção do Sal, Sentinela e, sobretudo, Clube da Esquina e Beco do Mota. Estas últimas eram homenagens a uma “mineiridade” intrínseca ao trabalho do pessoal no método coletivo de composição, tanto de letra, quanto de música. Àquela altura, Lô já era um violonista de talento e já assinara a melodia de Para Lennon e McCartney, composta na sala de sua casa, que ganhara letra de Fernando Brant e do irmão Márcio. O arranjo de Wagner Tiso despontara como um Rock psicodélico curto e intenso, abrindo o quarto disco de Milton, lançado em 1970. Lô e seu amigo Alberto (Beto) Guedes eram fãs de The Beatles e já tinham sua própria banda cover, The Beavers. Eles seriam responsáveis pelos alicerces roqueiros necessários para a incrementar a fusão musical que seria o grande diferencial do Clube, cujo nome vinha das próprias reuniões entre os amigos na esquina das ruas Divinópolis e Paraisópolis, em Belo Horizonte, onde os Borges foram morar. Havia em Clube da Esquina uma noção de que essa música brasileira e mineira deveria ser misturada com as influências vindas de fora, basicamente The Beatles, a partir do fim dos anos 1960. As experiências amalgamadas em forma de música deram origem a um novo tipo de som, com harmonias refinadas, arranjos elaborados, cria dos integrantes, que já tinham bagagem no ofício. Algumas canções, como a própria Beco do Mota, ou Morro Velho, surgiam como um protesto elegante contra a época de repressão, pareciam convites para um duelo ao por do sol contra o inimigo. Havia honra nelas e nenhuma voz evidente contra os governos militares, apenas sutilezas precisas.

Em 1972, Milton convidou Lô para participar das gravações de seu novo disco e, a partir da chegada do jovem (então com 19 anos) e de Beto Guedes, a fusão de estilos chegou ao máximo, gerando algo ainda inédito nos outros álbuns. As gravações se deram no Rio de Janeiro e os músicos alugaram uma casa em Piratininga, Região Oceânica de Niterói, na qual se hospedaram. Ali compuseram várias canções memoráveis e decidiram por batizar o novo álbum com o nome do coletivo informal de amigos, uma vez que quase a totalidade deles estava presente ali, compondo, tocando e gravando. A parte gráfica consistiu na formação de um painel com várias fotografias de parentes, amigos e pessoas decisivas para a realização pessoal dos amigos e coletiva do Clube, além da capa trazer uma icônica imagem de dois meninos, fotografados na estrada de Nova Friburgo, região serrana do Rio. Canções como Paisagem da Janela, Um Girassol da Cor de Seu Cabelo, Cais e Trem Azul respondem pela parte mais onírica do disco, enquanto San Vicente, Trem de Doido, Tudo Que Você Podia Ser, Os Povos e Nada Será Como Antes se encaixam nessa categoria de “protesto elegante”, trazendo letras que criticam e opinam com distanciamento e beleza sobre o momento do país e da própria América do Sul.

Conheci as canções deste disco aos 16 anos. A primeira impressão que me passaram foi que era preciso largar a vida no Rio e mudar pro interior. Ali, num movimento de bode tardio dos anos 1960, eu teria – sem saber – uma vida simples, “menor”, no sentido de precisar de pouco para ter felicidade e prosperidade. O Clube despertava em mim a vontade de sair da urbe e viver num lugar mais bucólico. Além do próprio álbum duplo, as carreiras solo de Lô e Beto Guedes tiveram início ali e, assim como Milton Nascimento, continuam rendendo bons frutos musicais. Mesmo sem ideologia, propaganda ou badalação, a música mineira setentista é riquíssima, única e tão importante quanto os momentos mais comumente apontados como relevantes pela crítica especializada. Conheça logo este pessoal, vasculhe seus discos, você só tem a ganhar.

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Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.