Alguns Pitacos Sobre Jazz

Gênero nascido no século 20 é um grande prazer para todo verdadeiro fã de música

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Estou com 44 anos e ainda sinto que deveria/poderia entender e gostar mais de Jazz. Sou apaixonado por seu significado histórico, o ritmo que foi criado por negros americanos, provavelmente do Sul, talvez Nova Orleans, talvez não, capaz de acolher para a música uma legião de instrumentistas negros (ou não) que não tivessem, necessariamente, treino ou cultura clássicos. Em uma instância muito objetiva, Jazz queria dizer liberdade, inclusão, improviso, fluência, habilidade. Era uma reação ao formalismo e ao branquismo europeus, responsável por grande parte do atraso no mundo, mas isso é outra história. O Jazz dos negros americanos pode ser entendido também como o som do século 20, que, por analogia, foi o período em que tudo o que nos diz respeito aconteceu.

Fui gostar tarde de Jazz, sempre me pareceu estranhamente anárquico. E, é claro, esta era a sua intenção e razão de existir. O contrário das partituras rígidas e dos enquadramentos, sobretudo, o oposto do encastelamento da música nas camadas mais altas da sociedade. O Jazz é o ponto de partida da própria música popular, o terreno comum de onde vieram estilos adjacentes, democráticos e desprendidos. Com o tempo, tais ramificações seguiram caminhos próprios e vinculados a estéticas particulares, enquanto a velha arte de improvisar e explorar fronteiras manteve-se como uma espécie de caixa preta do estilo. Foi esta capacidade que encantou uma geração de jovens homens no início dos anos 1950. A tal “Geração Beat” gostava dessa aura de liberdade que o Jazz exibia, esta noção de que não havia noção capaz de impedir as experimentações. Os artistas do estilo, sobretudo Miles Davis e John Coltrane, ostentavam seus instrumentos como se fossem mecanismos de obtenção de sabedoria. Eram heróis.

O Jazz, no entanto, exibe uma contradição. Mesmo tendo libertado a música de toda uma série de mandamentos e regras, rumando para algo mais popular, jamais conseguiu, de fato, alcançar o grande público. Permaneceu como uma espécie de tesouro para poucos, de saber privilegiado, de instância superior, que se alcança com percepção treinada e cultura prévia. Os jovens dos anos 1950 e início dos anos 1960 o viam como um manifesto mas a viagem que ele propunha não era para todos. E qual era essa jornada? Era a própria capacidade de aproveitar aquele novo mundo da época, aquela redefinição pós-1945, aquela vida mais tranquila, com a certeza (quase inabalável) que os jovens americanos não morreriam em massa nalgum front ao redor do planeta defendendo causas de outros povos. Vejam, eram jovens, portanto, ingênuos. Outro estilo, porém, foi mais eficiente nesta tradução: o Rock.

Muito mais próximo da urgência sensual da qual a juventude carecia há tanto tempo, o Rock falou muito mais claramente para essas legiões de imberbes do que o Jazz. A recepção dos críticos e fãs do estilo ao Rock foi a mesma: desdém, deboche, menosprezo daquela música “fácil” e “óbvia”, incapaz de rivalizar com a pureza e a complexidade do Jazz. Sim, complexo e arauto da liberdade, vai saber. De qualquer forma, o Rock começou a esvaziar a audiência, sobretudo quando iniciou sua jornada em direção à psicodelia, que significava um ato político em última instância. Ouvir Jazz e apreciá-lo, também. O que talvez tenha salvo o estilo de extinguir-se foi a capacidade dos próprios artistas de Jazz apreciarem as inovações sugeridas pelo Rock, incorporá-las ao ideário clássico e fazer algo novo. Foi o que se chamou de Jazz Fusion. Miles Davis, Herbie Hancock, John McLaughlin, George Benson, Stanley Clarke, Chick Corea, Jaco Pastorious, Pat Metheny, exceto Miles e Hancock, surgidos na onda do Fusion e da abertura de novas possibilidades a partir da eletrificação sugerida pelo Rock, além da mudança na maneira de tocar, de compor etc.

Essa incorporação de Jazz no Rock ou vice versa, conferiu ao Jazz a aura de modernidade que ele havia perdido no início dos anos 1960, quando foi desbancado da mesinha de cabeceira da juventude. De alguma forma, ambos os estilos atravessaram as décadas e chegaram até hoje, 2014, desprovidos de grande parte da carga de liberdade, mudança e revolução que significaram no passado. Mesmo assim, há momentos de interseção entre eles, que trazem algo da essência compartilhada de ambos. E, ao contrário do que pode parecer, há muita gente fazendo Jazz atualmente. Bandas, solistas, produtores, muita gente usufrui da aparente liberdade sem limites do estilo, combinada com a juventude e a aura de mudança do Rock para forçar as fronteiras. Vamos a alguns exemplos.

– Bad Plus – Everybody Wants To Rule The World (2008)

Trio americano que tem sua obra própria mas revisita clássicos do Pop ou de qualquer outro estilo e os recria sob a estética jazzística, cumprindo um ritual imemorial dentro dessa coisa de forçar fronteiras. Veja o que eles fazem com o maior hit do Tears For Fears.

– Medeski, Martin And Wood – Last Chance To Dance Trance (1994)

Outro trio americano, dessa vez mais autoral e capaz de sintetizar os improvisos com uma certa aura de banda independente dos anos 1990. Parceiros dos Beastie Boys e inseridos nessa galera, MMW é um belo exemplo de modernidade.

– Beastie Boys – The Mix Up (2007)

OK, os BB nunca foram jazzistas, mas nunca foram só artistas de Rap ou só de Rock, mantendo-se saudavelmente capazes de absorver influências novas. Este álbum de 2007 é todo instrumental e abre novos horizontes.

– Brad Mehldau – When It Rains (2003)

O pianista americano é um dos maiores e mais respeitados músicos da atualidade. Cheio de criatividade, Mehldau foi capaz de recriar clássicos de gente como Beatles, Tom Jobim, Radiohead e Nick Drake, além de manter-se fiel à uma estética musical própria e norteada por belas composições autorais.

– Pat Metheny – Improvisation #2 (2011)

Veterano guitarrista americano, sem dúvida um dos grandes mestres do instrumento e do estilo. Metheny permanece na ativa e criativo, tendo lançado as versões de estúdio e ao vivo de Orchestrion, quando ele manuseou um instrumento do passado, capaz de reproduzir o som de uma orquestra.

– Nils Frahm – Said And Done (2009)

Pianista e tecladista alemão, Frahm não é um jazzista ao pé da letra, mas utiliza-se do instrumento clássico do estilo e promove uma releitura do minimalismo setentista, com leveza e emoção.

– Radiohead – Kid A (2000)

Se há algum momento em que a obra do grupo inglês se aproxima de uma ausência de limites/barreiras estéticas, é quando Thom Yorke e cia. vivem a ressaca pós-OK Computer.

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Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.