Música Sem Desperdício

Em uma época em que ouvimos cada vez mais música, nem sempre aproveitamos ela ao máximo

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Tente responder: Quantas músicas você já ouviu hoje? Pense aí pra começar nos discos, nas playlists e arquivos de áudio que pipocaram nas redes sociais e que você deu play. É uma estimativa bem difícil mesmo se você não for um consumidor muito ávido. Afinal, tinha música nas propagandas na TV, rádio e streaming na Web, nos toques de celular e em games, nos carros e caminhões de vendas na rua ou tocando ao fundo em lojas, restaurantes ou bares. Repare: Há música por toda parte.

A ideia feliz de estar rodeado de música o tempo todo ganha novos ares quando nos deparamos com a realidade de que nem sempre notamos que estamos ouvindo alguma coisa, mesmo se o volume estiver suficientemente alto para ela ser percebida. Mesmo quando escutar foi uma escolha nossa, acontece às vezes de você colocar um álbum pra tocar (por exemplo) e se dar conta de que já se passaram cinco faixas. Será que nos acostumamos mal a ouvir?

É fácil focar no lado bom da acessibilidade da música hoje em dia (não fosse isso, nem existiria Monkeybuzz), mas precisamos questionar aonde isso nos leva. Nem tente perguntar quanto de música qualquer um de nossa redação ouviu na semana passada, porque seria imensurável (lembrando que escutamos muita coisa pro trabalho, mas igualmente no tempo livre). Porém, não pergunte quantos versos daquelas músicas conseguimos nos lembrar hoje, porque seria embaraçoso.

Isso de ter alguma coisa tocando o tempo todo é normal pra qualquer um que trabalhe com jornalismo musical. “Ainda mais que agora o 3G é tão acessível e junto com o Bluetooth e Deezer me deixam ouvir praticamente qualquer coisa que eu queira”, conta Tony Aiex, do site Tenho Mais Discos que Amigos, “ouço várias coisas durante o dia e relaxo enquanto faço outras menos sérias, aí presto mais atenção na música e deixo a atividade em segundo plano, como limpar caixas de e-mails, aprovar comentários, etc”. Quem não trabalha diretamente com isso acaba passando pela mesma situação. O ator e produtor cultural Rodrigo Marcoz conta que “até dormindo costumo colocar algum som para tocar” e que “às vezes, acordo com uma música na cabeça, daí escuto o CD do autor o dia inteiro”.

Olavo Rocha, da banda Lestics, conta que ouve música “no metrô, no ônibus, na rua. No trabalho não, porque a música me rouba completamente a atenção, e aí eu não consigo produzir nada”. Me fez muito sentido ouvir isso de um músico, afinal, se cada um tem mesmo seu jeito de ouvir, quem escreve e compõe sabe melhor do que ninguém a diferença entre uma audição passiva e uma mais atenta.

E essa pré-disposição para notar o que se ouve é justamente um dos conceitos que motivaram a levantar essa discussão, esse e o de uma música “invisível”, ou “camuflada” – aquela que já não percebemos. À medida que refletia, lia e coletava os depoimentos, mais entendi as duas coisas com uma ligação muito forte de causa e consequência (quanto mais deixamos de prestar atenção à música, mais ela nos passa batida).

“Ultimamente, tenho pensado muito em um termo que escutei numa palestra: engajamento emocional”, conta Gabriel Vaz, da banda Baleia, “isso é o que mais sinto falta nas pessoas”. Quanto mais ele comentou sobre isso, mais eu entendia a minha própria visão sobre essa postura mais ativa na audição, uma abertura pessoal a se envolver mais com o que está tocando: “Sem engajamento emocional, não há conexão e não há possibilidade do despertar de algo novo dentro de si. Há apenas a capacidade de emular essas mesmas sensações e ideias que já estão sedimentadas e explicadas”.

Percebo que a música faz o tempo passar mais rápido em uma viagem (seja uma internacional em um avião, ou mesmo no trajeto voltando pra casa do trabalho), deixa qualquer ambiente mais agradável e me dá um pique extra pra realizar qualquer coisa. Ao mesmo tempo, precisar escutar novos discos e dividir meu tempo entre esses e meus favoritos tem me ensinado tanto a buscar situações em que eu consiga me envolver mais com as letras e arranjos para usufruir melhor daquela arte.

“Se as pessoas estão prestando mais ou menos atenção, eu nem sei dizer”, comenta Gabriel”, “mas que há uma inercia enraizada na cultura, isso tenho certeza. E as pessoas estão desmerecendo a capacidade transformadora e motivadora do que é emocionalmente profundo”. E esse estado de contemplação e de fomentação interna não pode ser atingido com uma mente distraída.

Então, tente responder: Quantas músicas você quer ouvir amanhã?

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MARCADORES: Discussão

Autor:

Comunicador, arteiro, crítico e cafeínado.