Gang Of Four: Nada Mudou

Trinta e cinco anos após seu lançamento, “Entertainment!” ainda tem muito o que dizer

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Você bem deve saber que vivemos numa profusão tão grande de estilos musicais que essa amálgama não assusta mais ninguém. Difícil é encontrar, hoje em dia, uma banda que seja possível definir com menos de três gêneros. Mas, sem querer patinar demasiadamente neste assunto, vou propor um exercício breve: tentar imaginar o que tamanha inventividade significava no final dos anos 70.

Eu começo meu texto sobre este viés porque, a meu ver, existem alguns fatos irrefutáveis que consagram Entertainment! do grupo inglês Gang Of Four como um dos grandes álbuns de todos os tempos. O primeiro deles diz justamente sobre seu estilo. Me parece que Gang Of Four, ao menos com sua estreia, se encontra na curva que se transmuta da primeira letra entre o Punk e o Funk, com suas guitarras rápidas e cruas (com cara de fita demo), levemente distorcidas e que atacam formatadas em algumas células rítmicas. Essa mescla, que resultou numa sonoridade própria, fez o grupo ser taxado com o rótulo de Pós-Punk. Todavia, creio que vale a seguinte lembraça: o álbum foi lançado em 1979, apenas dois anos após à consagração da primeira fase do Punk (numa época, volto a lembrar, em que as coisas não caminhavam tão rápido quanto na nossa querida via expressa da Internet).

Mas, voltando aos tais fatores irrefutáveis: outra coisa que sempre me fascina são os temas tratados por um álbum. Entertainment! não deixa nada a desejar neste quesito sendo precisamente a síntese do paradoxo que apresenta em suas letras, ou seja, a vulgarização do sofrimento moderno, transformado em capital e, é claro, entretenimento. Todavia, enquanto não nos atemos muito neste quesito, vamos ao próximo, porém não menos importante: sua herança musical. O estilo desta estreia soava tão interessante que não é difícil distinguir sua influência sobre um sem número de bandas posteriores: de Red Hot Chilli Peppers (talvez a mais óbvia dentre todas), passando por Fugazi, Dead Kennedys, Rage Against The Machine até outras mais recentes como Franz Ferdinand e até mesmo Bloc Party, o Funk agressivo, a narrativa aparentemente desconectada e as apropriações vindas de outros universos (como o Dub e o Reggae) ainda se ilumina por alguns cantos do universo Indie.

As faixas de Entertainment! (doze em sua versão original) são contestações políticas de diversas facetas do sistema capitalista e, consequentemente, do estilo de vida da época. Vamos começar, então, por aquelas que usam as relações amorosas como viés para sua crítica. O tema aqui é o efeito nocivo que a propaganda, os ideais de fama e o dinhero tem sobre as relações afetivas dos casais e, mais especificamente, sobre a frustração em contraste com a liberdade sexual das pessoas. Natural’s Not In It e Damaged Goods falam sobre os padrões irreais vendidos pelos anúncios de produtos de beleza, a fetichização e a mercantilização do sexo como sintomas desta repressão. Nestas faixas, que dizem “dream of the perfect life, economic circumstances, the body is good business” ou mesmo “sometimes I’m thinking that I love you, but I know it’s only lust” temos as relações pessoais são tratadas como meros bens de consumo descartáveis.

Mas Entertainment! não se atém apenas a isso, e expande o tema da humanidade anestesiada com a vida de modo mais amplo, graças ao consumo desenfreado e à apatia provocada pela televisão. A metáfora ideal para este tema está na faixa de abertura, Ether e na sua alusão ao white noise. O ruído, justamente aquele que aparece quando uma televidão está fora do ar, tem diversas aplicações práticas: de exercícios de relaxamento à métodos de tortura. Ether confronta a prazer mudano do “homem comum” que preso em seu pequeno paraíso doméstico (“trapped in heaven life style”), assiste o noticiário para relaxar no final do dia, no qual vê, por sua vez, membros do IRA presos e torturados pelo governo (“locked in Long Kesh”). A alienação do público diante das mortes do noticiário também pode ser vista em 5.45 (“how can I sit and eat my tea with all that blood flowing from the television […] guerilla war struggle is a new entertainment”).

Outra metáfora que se encaixa perfeitamente na crítica social de Entertainment! está no biquini. A faixa I Found That Essence Rare (que traz no título uma alusão a uma propaganda de perfume) traz a seguinte letra: “Aim for the body rare, you’ll see it on TV, the worst thing in 1954 was the Bikini. See the girl on the TV dressed in a Bikini, she doesn’t think so but she’s dressed for the H-Bomb”. Você sabia que o traje de banho foi nomeado graças a testes nucleares nas Ilhas Bikini? Pois é, aparentemente os publicitários envolvidos nesta campanha acharam que o estouro da bomba atômica e de seu novo produto eram dignos de ser comparados numa campanha de marketing. Gang Of Four, além da crítica ao acontecimento em si, chama atenção para o fato deste evento ser desconhecido ou simplesmente ignorado.

O trabalho, como já vimos, apoia-se em diversas teorias, como a crítica ao capitalismo derivada do marxismo, aliada à critica à mercantilização e, consequentemente, à alienação. Entertainment!, todavia, não se atém somente a estes, e serve de introdução a uma série de princípios teóricos, mais ou menos revolucionários. Por exemplo, há a presença de letras influenciadas pelo feminismo e os ideais situacionistas. Além das citações críticas à Teoria dos Grandes Homens na faixa Not Great Men.

A faixa de encerramento, (Love Like) Anthrax funciona como uma grande conclusão do trabalho: com um instrumental inédito para o grupo até então, e com os vocais divididos em duas pessoas (como se funcionassem como os dois hemisférios cerebrais), em primeira instância, colocando-se contra o amor romântico, a faixa apresenta um protagonista dividido em duas realidades, confrotando a si mesmo numa espécie de ressaca moral, com uma dolorosa consciência da realidade crua do mundo.

Colocando-me como ouvinte, trinta e cinco anos depois do lançamento de Entertainment!, sinto falta de citar o quarto e último fator que atesta a grandiosidade deste álbum: sua atualidade. Numa época em que a (des)polarização partidária assombra os debates políticos de um país em vésperas de eleição presidencial, a violência policial descontrolada ainda fere os direitos humanos, assistimos a grupos feministas e LGBT ainda lutando por sua liberdade sexual, ou mesmo em termos ainda mais recentes, em que presenciamos a fetichização das fotos de celebridades nuas a despeito do seu direito à intimidade, parece que ainda temos muito o que aprender.

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ARTISTA: Gang Of Four
MARCADORES: Aniversário

Autor:

é músico e escreve sobre arte