Tim Maia Em Obscuras Canções

Mestre da Soul Music brasileira, homenageado em filme, merece ter sua identidade conhecida

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Quem for ao cinema para ver Tim Maia, filme sobre a vida do mestre da música negra brasileira, vai presenciar um espetáculo interessante. Bem produzido, o longa do diretor Mauro Lima, estrelado por Babu Santana, Robson Nunes, Aline Moraes e Cauã Reymond, é feito sob medida para o público em geral, uma vez que se vale de algumas “licenças ficcionais” ao longo da narrativa. Lima também assina o roteiro, baseado livremente na biografia Vale Tudo – O Som e a Fúria de Tim Maia, escrita por Nelson Motta e que se tornou best seller há alguns anos. Desde já aviso que este texto tem alguns spoilers do filme, sendo assim, fique alerta a partir de agora. Ou leia depois que voltar do cinema.

Há problemas no filme para quem acompanha a carreira de Tim Maia além do limite do senso comum. Sabemos que Sebastião Rodrigues Maia era um sujeito talentoso e de temperamento difícil, pra dizer o mínimo e ser gentil. A revolta dele vinha de vários setores da vida cotidiana, desde a pobreza, passando pelos fracassos com a mulherada, chegando na demora que enfrentou para fazer sucesso nas paradas. Ele foi o último de seus parceiros de Tijuca – bairro da Zona Norte do Rio – a chegar no topo das listas de canções mais tocadas naquele Brasil da ditadura militar, que tinha como força motriz a Jovem Guarda. A trinca Carlos Imperial, Roberto e Erasmo Carlos aparece no filme. Imperial foi o produtor que deu chance ao primeiro grupo vocal de Tim, The Sputniks, que contava com o futuro Rei no violão e voz. A formação não foi além do programa de auditório do próprio Imperial, tendo fim junto com a atração televisiva, ainda antes da Jovem Guarda começar. Enquanto Tim partiu para uma incursão em terras ianques, Roberto e Erasmo ficaram por aqui e receberam as posições mais privilegiadas do nascente movimento. Quando ele regressa dos Estados Unidos, os dois já são ícones do recém-nascido Rock nacional.

O filme é hábil ao mostrar Robson Nunes como este jovem Tim Maia, uma figura que jamais foi vista pelo grande público. A partir do estouro de Nao Vou Ficar, canção composta para o disco de 1969 de Roberto Carlos, Tim ganha chance de gravar seu primeiro disco, no ano seguinte. 1969 também é o ano em que um certo cantor paraguaio, radicado no Brasil, grava seu maior sucesso: Stella. Seu nome? Juancito, mais conhecido como Fábio. A primeira escolha errada do filme é justamente fazer dele um narrador onisciente da trama vivida por Tim. Fábio foi seu amigo por mais de trinta anos, lançou livro sobre o assunto – Até Parece Que Foi Sonho – Meus 30 Anos de Amizade e Trabalho Com Tim Maia e surge com importância, sobretudo na primeira fase da carreira de Tim, até 1976, quando grava seus álbuns Tim Maia Racional vol.1 e vol.2. Pouco depois, outra escolha estética do roteiro: a sequência de eventos é interrompida, mostrando a depressão que nosso herói enfrenta com o fracasso de vendas dos discos e os problemas conjugais, culminando com a partida de Fábio, dizendo não aguentar mais suas loucuras. Com isso, o filme deixa de lado uma série de acontecimentos importantes, a começar pelo retorno do próprio Fábio, três anos depois, pedindo “uma força” para o amigo, que se dispõe a ajudá-lo e com quem grava dois compactos de muito sucesso: Até Parece Que Foi Sonho (1978) e Velho Camarada (1979, com a participação de Hyldon).

Das liberdades ficcionais de Tim Maia, o Filme, nenhuma é mais invasiva que a personagem de Aline Moraes, Janaína. A ideia do roteiro foi criar uma espécie de musa permanente do cantor, que, pelo contrário, sempre sofreu nas conquistas amorosas. Janaína surge como uma menina da órbita tijucana do fim dos anos 1950, que conhece a turma com quem Tim se afina. Depois ela está no auditório dos programas de Carlos Imperial para, mais tarde, ser tiete titular de Roberto Carlos e, logo depois, do próprio Fábio. Quando Tim estoura nas paradas com Azul da Cor do Mar, ela se bandeia para o enorme cantor. Segundo o livro de Nelson Motta, a canção – de autoria de Tim – teria sido composta a partir da “inspiração” vinda de um poster de uma revista masculina. Tais deslizes, no entanto, não comprometem mortalmente o filme, mas, como dissemos, encurta o seu espectro de defensores.

Monkeybuzz celebra este momento em que a obra e a vida de Tim Maia são assunto das rodinhas de conversa. Para isso, elaboramos uma lista de dez canções ignoradas pelo senso comum e ausentes da trilha sonora do longa, seja pelo recorte cronológico ou por serem patrimônio dos admiradores mais fiéis de sua obra. Ao longo do tempo, as noções de memória vão se modificando e novos fatos surgem. A parcela oitentista do repertório de Tim Maia sempre foi considerada inferior aos clássicos da década anterior, do mesmo jeito que a trajetória de um importante parceiro dos tempos de Tijuca, Jorge Ben. Aos poucos a obra de Ben é alvo de reavaliação, mostrando o quanto o artista teve momentos interessantes e que foram banidos das páginas da crítica musical. Com Tim acontece o mesmo, com o benefício de que as canções dele só sofreriam baque significativo a partir da década de 1990, quando os álbuns de inéditas já eram raros e suas condições financeiras/de saúde, tornavam os esforços muito grandes.

As canções abaixo são emblemáticas na fase madura de sua carreira. Sonorizaram bailes de subúrbio, trilhas de casais apaixonados e mantiveram o enorme soulman tijucano na ativa. Para você, que está se inteirando da trajetória dele pelo filme, elas são valioso contraponto ao que é mostrado no longa, ou seja, os grandes sucessos.

Lábios de Mel (1979) – Faixa romântica do obscuro álbum Reencontro, de 1979, que sofreu grandes problemas de distribuição por conta do esquema independente da gravadora de Tim, a Seroma. Erasmo Carlos regravou esta canção, que, apesar dos percalços, tornou-se uma preferida entre os fãs mais devotados.

Nuvens e Haddock Lobo, Esquina Com Matoso (1982) – Ambas estão presentes no disco Nuvens, de 1982, trabalho considerado um clássico esquecido na carreira de Tim. A faixa título é de autoria de Cassiano (também autor da clássica Primavera), grande compositor e amigo de Tim. O arranjo vocal e a dinâmica da faixa a colocam em pé de igualdade com grandes registros da música negra mundial. Haddock Lobo, Esquina Com Matoso, por sua vez, leva o nome da localização geográfica do ponto de encontro da turma. É homenagem ao pessoal que frequentava o Bar Divino, na Tijuca do fim dos anos 1950. O amigo Erasmo Carlos tem canção semelhante, chamada Turma da Tijuca, gravada um ano depois.

Tudo Vai Mudar (1980) – O álbum homônimo de 1980 tem status de cult entre os fãs. Ficou muito tempo fora de catálogo, demorou a ser lançado em CD e, ao mesmo tempo, reune canções memoráveis. A produção é do próprio Tim, com o auxílio luxuoso – e decisivo – de Lincoln Olivetti. A letra otimista e bem feita é exceção na carreira dele, mas o arranjo de metais é clássico, no padrão Vitória Régia.

Marcio Leonardo e Telmo e Rodésia (1976) – Duas canções maravilhosas do não menos sensacional álbum homônimo de 1976. Foi o primeiro lançamento do cantor após a empreitada racional e ele vinha com fome de bola. Além dos arranjos precisos e moderníssimos, os temas mostram bem o espectro de influências de Tim e o situam como um artista sintonizado com o mundo. Enquanto Márcio Leonardo e Telmo é uma canção de ninar em ritmo Funk, feita em homenagem aos dois filhos, Rodésia é uma olhadela para os movimentos tardios de descolonização da África, na qual o antigo domínio inglês deixava nome imperial – em homenagem ao coronel Cecil Rhodes – para adotar a forma nativa: Zimbábue. Dois anos depois, Bob Marley gravaria canção sobre o mesmo assunto.

Você Me Enganou (1985) – Canção suingada, cheia de arranjos eletropop, tipicamente oitentista. Gravada no disco homônimo de 1985, que teve Leva como maior hit. Você Me Enganou é uma pequena delícia, que chegou a tocar em poucas emissoras de rádio naquele ano de 1985.

Até Parece Que Foi Sonho – com Fábio (1978) – Tim gravou esta canção para dar uma força na carreira do amigo, que estava no ostracismo absoluto. Com este single, Fábio foi reconduzido às paradas de sucesso. Arranjo maravilhoso e Tim cantando no auge da forma.

A Rã (1990) – Canção originalmente composta por João Donato e Caetano Veloso, mostra um pouco de uma face desconhecida de Tim, a de fã da Bossa Nova. O filme mostra os jovens Sputniks numa cena engraçada no Beco das Garrafas, reduto da Bossa na Copacabana do início dos anos 1960, na qual eles apreciam Nara Leão (viviva por Mallu Magalhães) se apresentando. A reação é de todos (exceto Roberto Carlos) teriam detestado a riqueza de acordes do novo ritmo, o que é impreciso. Erasmo, Roberto e o próprio Tim eram admiradores da Bossa Nova, e sempre foram desprezados pelos artistas do movimento. A versão de A Rã está no álbum Tim Maia Interpreta Clássicos da Bossa Nova, de 1990.

Velho Camarada – com Fábio e Hyldon (1979) – Outro compacto gravado com Fábio que chegou ao topo das paradas de sucesso em 1979. A participação de Hyldon dá um charme maior à gravação, na qual ele recita o refrão de sua clássica Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda.

Além do Horizonte – com Erasmo Carlos (1980) – Canção do álbum Erasmo Carlos Convida, no qual o Tremendão recebe vários cantores e cantoras da MPB e reinterpreta clássicos de sua carreira e de Roberto. Tim foi chamado para dar uma roupagem samba-rock a Além do Horizonte e encheu o estúdio com a numerosa Banda Vitória Régia. O resultado é uma das melhores gravações de sua carreira, com um arranjo de metais único, além de uma levada irresistível. Essa versão fica milhões de anos-luz à frente do registro original, de 1975, de Roberto Carlos.

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ARTISTA: Tim Maia
MARCADORES: Conheça

Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.