John Martyn, Mais Que o Talentoso Amigo de Nick Drake

Trovador escocês levou Folk a um caminho de experimentação

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John Martyn, um esquentado e vigoroso escocês, não me perdoaria por este título, apesar de guardar grande afeto pelo introvertido Nick Drake. Sua extensa carreira permanece privilégio de poucos ouvintes fora do mundo anglófono, com pouquíssimos admiradores fora do Reino Unido. Para muitos, inclusive a maioria dos apreciadores de Folk, apenas a variação ianque do gênero é relevante, algo que chama a atenção, uma vez que, a rigor, a matriz da transformação do cotidiano em canção e, daí, em veículo de comunicação em âmbito privado (ou público, dependendo da audiência e circunstância) surgiu na Europa, em algum momento da Idade Média. Claro, a presença de negros e índios, além do contexto histórico distinto, temperou os modos Folk americanos, mas uma grande quantidade de cantores e compositores britânicos estava em atividade na segunda metade dos anos 1960, entre eles, o jovem escocês, que lançava seu primeiro álbum aos 19 anos, em 1968.

Ao contrário de Drake, Martyn nunca foi introspectivo. Teve problemas sérios com drogas e álcool ao longo de sua trajetória, que encerrou-se em 2009, quando ele faleceu. Permaneceu ativo por vários anos, lançando mais de 20 álbuns, marcados, em seus momentos mais inspirados, pela absoluta abertura à experimentação e ampliação do contexto Folk, misturando a abordagem mais clássica com Blues, Rock e Jazz, que foram sendo incorporados aos poucos em seus álbuns. Martyn sempre foi fã dos grandes mestres americanos do Blues, principalmente Robert Johnson, mas os britânicos também lhe interessavam, especialmente Davey Graham. Ao longo de 1967, ele e mais alguns contemporâneos como Bert Jansch e Al Stewart, surgiram na cena Folk londrina, destino comum e almejado por todos. Logo chamaram a atenção de Chris Blackwell, dono da valorosa Island Records, uma gravadora de Reggae que buscava ampliar seu elenco e voltara sua atenção para esta nascente cena de Londres. Em pouco tempo Martyn assinaria contrato e já lançaria dois bons álbuns: a estreia tradicional em London Conversation e seu sucessor, o mais ousado The Tumbler, que já contava com a produção de Stewart e apontava um rumo pouco ortodoxo, em direção às improvisações do Jazz.

Logo após seus dois primeiros trabalhos, John encontrou sua futura parceira e esposa, Beverly. Seu terceiro álbum teve participação intensa de Bev, reafirmando seu engajamento por experimentação e misturebas sonoras. Ao mesmo tempo, a aquisição de uma câmara de eco tornou a sonoridade de Martyn ainda mais distinta, possibilitando a gravação de loops de violão ao vivo, que se repetiam enquanto ele palhetava outros acordes e melodias, reafirmando a distinção de sua proposta. Stormbringer, seu próximo álbum, foi gravado em Woodstock, para onde o casal rumou em busca dos shows do famoso festival de Rock. Gravaram com músicos locais, entre eles, Levon Helm, baterista e vocalista de The Band, com direito a faixa em homenagem ao lugar e tudo mais. The Road To Ruin foi o outro trabalho desta fase, gravado também com Beverly.

Um grande momento da carreira de Martyn viria nos três álbuns seguintes, Bless The Weather e Solid Air. O primeiro, gravado em 1971, traz a famigerada câmara de eco, conhecida como Echoplex, debutando em suas gravações de estúdio, conferindo a esquisitice necessária. Além dela, John começaria a adotar um estilo de tocar e cantar que alternava agressividade e quietude, proporcionando um misto de confusão e fascínio entre seus ouvintes e espectadores de shows. Um álbum experimental, Inside Out, viria em seguida, basicamente dedicado às peripécias com o uso do Echoplex e quase abrindo mão das melodias e arranjos mais lineares. O gosto estranho sairia por completo com o lançamento seguinte, o sensacional Solid Air, em 1973. A canção título deste álbum é dedicada a Nick Drake, seu amigo e colega na Island Records. O estilo, a letra e o arranjo são total e intencionalmente semelhantes aos de Nick, na época envolto em nuvens de mistério e reclusão por conta de seus problemas com a depressão crônica. Martyn se inspirara na variação mais recente da obra de Drake, contida no seminal álbum Pink Moon, lançado um ano antes. Nick chegou a ouvir a homenagem, uma vez que faleceria apenas em 1974. O resto do álbum não guarda semelhança com as canções do amigo, uma vez que Martyn seguia firme no propósito de misturar e experimentar com Jazz, Blues e sua câmara de eco, mas capaz de obter sucesso de execução com algumas criações, caso de May You Never e Head And Heart.

A carreira de Martyn começava a entrar em declínio por conta de seus problemas com álcool. Em termos artísticos, este ciclo se encerraria após os dois próximos álbuns, Sunday’s Child (1974) e Live At Leeds (1975), com John se afastando dos estúdios e das turnês pelos dois anos seguintes. Resolveu viajar para a Jamaica a convite de Chris Blackwell e um dos contratados da Island, Lee Scratch Perry, o mago do Dub. Tal movimento inspirou Martyn novamente e ele participou de várias gravações em álbuns de Reggae, feitas durante sua estada na ilha. De volta à Inglaterra e com a produção do próprio Blackwell, ele grava One World, jamais um disco de Reggae, mas um trabalho com novidades rítmicas e capaz de equilibrar em doses iguais a tradicional sede por experimentação e a concepção de melodias palatáveis. A abertura com Dealer traz um arranjo com espaço para alguma dança e letra sobre algumas transgressões à lei, mas, acima de tudo, uma voz peculiar e calejada pela estrada. Big Muff, com participação de Perry, é o mais próximo que Martyn chega do Reggae e da psicodelia. Como pano de fundo de tudo isso, a crise no casamento de John e Bev e o constante problema com a bebida.

O próximo talvez seja o melhor álbum já gravado por John. Grace And Danger chega em 1980, cheio de canções híbridas e participação de gente peculiar como Phil Collins. O clima é personalíssimo, cheio de canções singelas, mas já irremediavelmente modificadas pelos arranjos cheios de pianos Fender, baixos gordos e guitarras sutis. A faixa título é outro bom exemplo desta estética, chegando bem próximo do Rock mais tradicional e a luminosa cover para Johnny Too Bad mostra o quanto o Reggae havia vindo para ficar na vida de Martyn.

A partir daí, a carreira de John entrou em grande oscilação. Apesar de dois discos interessantes produzidos por Phil Collins (Glorious Fool e Well Kept Secret), gravados em 1981 e 1982, respectivamente, os problemas com o alcoolismo fizeram com que ele precisasse se ausentar várias vezes para tratamentos. Ao longo dos anos 1980, ele gravou alguns discos menos inspirados e registros ao vivo que serviam apenas para lembrar de grandes composições do passado. Os problemas com a qualidade de suas composições o levaram a ter problemas com a Island, terminando por deixá-la no início dos anos 1990. A ideia mais interessante veio em 1993, quando ele resolveu regravar alguns de seus maiores sucessos com a participação de vários amigos do passado, como Phil Collins, Levon Helm e David Gilmour, usando suas influências e experiências colhidas ao longo dos anos para reler e refazer alguns de seus arranjos mais antigos. O álbum que trouxe estas regravações, No Little Boy, foi bem recebido pela imprensa especializada e reanimou os fãs, que não esperavam que John ainda pudesse ser relevante. Outro momento interessante veio com o lançamento de One Bell Church, em 1999, um álbum composto apenas de versões, entre elas, uma inusitada releitura de Glory Box, sucesso de Portishead. Os anos 2000 encontraram John Martyn em busca de renovação. Seus dois álbuns lançados, Glasgow Walker (2000) e On The Cobbles (2004) têm momentos interessantes e arejados, que apontavam para uma possível nova fase de inspiração por parte de Martyn. Após receber o título de Cavaleiro do Império Britânico no fim de 2008, John teria pouco tempo para celebrar a condecoração, uma vez que morreria em 29 de janeiro de 2009, vítima de pneumonia, aos 61 anos.

As circunstâncias levaram a carreira musical de John Martyn a atingir contornos épicos e dramáticos em pouco espaço de tempo. Sua sede por experimentação, sua reverência pelas tradições e o apreço pela música foram decisivos em vários momentos. Muitos de seus álbuns são documentos destas características e constituem belos exemplares do que se fez de mais ousado e pessoal no terreno do Folk. E, é claro, você precisa conhecer. Ouça e tire suas próprias conclusões.

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ARTISTA: John Martyn
MARCADORES: Redescobertas

Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.