Urbanidade: Espaço para a Música – Buenos Aires

Bandas como El Mató Un Policia Motorizado continuam legado roqueiro da capital argentina

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A cidade é uma das grandes invenções da humanidade. Pode parecer estranho falar isso, justo porque elas parecem existir desde sempre, mas o que entendemos hoje por “cidade” nasceu a partir do século 19, mais precisamente, após as revoluções Industrial e Francesa e a consequente confirmação do capitalismo como regime econômico. Tudo cresceu, pessoas vieram, pessoas se foram, empresas e fábricas iniciaram atividades, o que demandou transportes e serviços para viabilizar tudo. As populações aumentaram exponencialmente, onde antes havia desocupados agora havia uma invenção também típica destes tempos: a classe trabalhadora. Tudo isso e outros fatores peculiares fizeram da urbanidade o habitat natural dos contingentes humanos e esse contato novo, essa aproximação de gente diferente e a inserção dela em uma realidade cotidiana unificada afetou a produção da cultura das sociedades. Esta pequena série de artigos visa mapear o que algumas cidades têm de interessante a oferecer em termos de produção musical. Falaremos de passado e presente, quando der, de futuro, mas garantimos que você vai gostar.

Buenos Aires

A capital da República Argentina está no epicentro de algo chamado Conurbado Bonaerense. É uma gigantesca área metropolitana que une distritos, bairros e encosta na cidade vizinha, La Plata, a capital da província de Buenos Aires. A cidade homônima, objeto de nossas considerações iniciais nesta minissérie de artigos, foi emancipada no fim do século 19, para se tornar a capital federal, motivo pelo qual La Plata foi planejada e construída. São mais de 13 milhões de habitantes, indo e vindo, interagindo e trocando experiências. A região recebeu imigrantes alemães e italianos, influência inglesa (algo que se pode notar no futebol de lá, sobretudo nos nomes dos times) e trilhou seu caminho próprio ao longo dos últimos cento e poucos anos. Tornou-se uma cidade com contornos europeus, “a capital de um império que nunca existiu”, segundo um professor de História que tive há décadas.

Falar de Rock Argentino é, praticamente, falar da música que se passou a produzir no país, mais especificamente, em Buenos Aires, a partir da segunda década pós-Segunda Guerra Mundial. O planeta seria atingido implacavelmente pelos ritmos e estilos musicais feitos para e por jovens. Mesmo num país periférico e sem identificação imediata com o berço dessa produção musical, os Estados Unidos, não tardaria para que a cidade tivesse suas primeiras formações musicais neste âmbito De algo restrito inicialmente a bandas que emulavam acordes e visual de The Beatles e The Rolling Stones, o rock de Buenos Aires evoluiu muito e em curtíssimo espaço de tempo, a partir da mistura de influências externas com a música popular argentina. Logo no início dos anos 1970, sob alternância de períodos ditatoriais e de pouca liberdade de expressão, bandas como Vox Dei, Sui Generis, Almendra e Pescado Rabioso, as duas últimas contando com a participação do grande Luiz “El Flaco” Spinetta, um dos maiores ídolos do estilo desde sempre, fizeram sucesso por lá.

Em pouco tempo, Buenos Aires comportava uma produção local nos anos 1970 que refletia duas vertentes importantes: o Progressivo e o Rock clássico, sempre com a adição de toques locais, gerando um estilo com grande distinção e personalidade. O clima de restrição à liberdade e a situação econômica também abasteceram ideologicamente os compositores da época. Nomes como Charly Garcia, Pedro Aznar, Daniel Lebón, Spinetta, eram ídolos locais e se alternavam em formações que tinham o Rock como pedra de toque. A chegada do fim dos anos 1970 trouxe mais linha dura militar, refletida na lamentável edição da Copa do Mundo de 1978, quando o governo influenciou diretamente nos rumos da competição, também traria um pesadelo inimaginável para os argentinos, a Guerra das Malvinas. Iniciado em 1982, tendo a Inglaterra de Margaret Thatcher como opositora e com a intenção de funcionar como um fator de união do povo contra um inimigo externo, usando o pretexto de anexar um arquipélago de ilhas sob o domínio britânico, o conflito foi desastroso para o país em vários aspectos.

A situação lamentável causou a queda dos militares, caos econômico e deu voz a uma nova geração de bandas, que se formaram a partir do início dos anos 1980, sendo a maior delas, Soda Stereo. Com a liderança de Gustavo Cerati, a banda mesclou como ninguém as sonoridades do Rock inglês com a “argentinidad” e tornou-se a maior banda da América do Sul, passando quase sempre ignorada no Brasil. Aos artistas veteranos e a esta nova geração de bandas, entre as quais também estavam Los Fabulosos Cadillacs, Patricio Rey y sus Redonditos de Ricota (de La Plata), Ratones Paranoicos, entre outras, veio se juntar Fito Paez, nativo de Rosário. Com poesia e sensibilidade ímpares, Fito fez sucesso até no Brasil, através da parceria com Os Paralamas do Sucesso, que, em 1986, fez excursão pela Argentina, conquistando vários admiradores e fazendo apresentações conjuntas com bandas e artistas locais. Charly Garcia também participou de shows com os brasileiros. Mais tarde, ao longo dos anos 1990, Fito veio várias vezes ao Brasil e também conquistou admiradores por aqui, entre eles Titãs, que o convidaram para participar de seu álbum Acústico MTV, em 1997.

A década de 1990 trouxe novas bandas e novas visões para o Rock produzido no eixo Buenos Aires – La Plata. Formações como Babasonicos, Todos Tus Muertos, Los Brujos, Peligrosos Gorriones entraram no mapa de bandas em atividade, forjando algo que foi chamado como Nuevo Rock Argentino. Em meio a tudo isso, Soda Stereo experimentava seu período de maior sucesso, com o desempenho de seu quinto álbum, Canción Animal, lançado em 1990, considerado hoje um dos mais importantes discos do Rock Latino de todos os tempos. Divisões como o chamado “Rock Rollinga”, derivado da levada clássica de bandas como Rolling Stones e o próprio Ska, levado adiante por formações como Los Fabulosos Cadillacs e Los Auténticos Decadentes ampliaram o escopo da produção musical da região. Em meio a estas novas formações, os veteranos artistas – Fito, Charly e Spinetta – sempre se mantiveram ativos, seja em projetos coletivos, reedição de bandas clássicas dos anos 1970 e gravações solo.

Os últimos anos da década de 1990 e os primeiros do novo milênio viram a decadência do Rock produzido na cidade e a ascensão de novos ritmos, a Cumbia Villera e Reggaeton. O primeiro, oriundo das regiões mais empobrecidas da metrópole, e o segundo, popular em toda a América Ibérica. Ambos passaram a disputar espaço nas rádios, shows e na própria indústria musical com o Rock. Fenômeno comum a várias regiões, essa popularização de um ritmo originário de uma camada mais popular e numerosa, cria um movimento na indústria cultural em direção favorável, massificando-o e relegando o ritmo anterior ao underground e à internet. Se isso causou mudanças negativas, deu chance ao surgimento de uma novíssima cena musical na região. Dentro desta nova realidade, destaca-se a banda platense El Mató a un Policía Motorizado com sonoridade inspirada em gente como Pixies e Jesus And Mary Chain. Além dela, NormA, Velentin y Lo Volcanes e 107 Faunos seguem numa onda Lo-Fi noventista. Não há exatamente uma cena musical consolidada, mas um conjunto de grupos com propostas e sonoridades interessantes, totalmente conectados com o que acontece em qualquer metrópole mundial em termos de produção musical.

Além das bandas, claro, há selos. O Laptra (também de La Plata) é responsável pelo lançamento de álbuns desta novíssima geração portenha. Festivais como El Mapa de Todos também ajudam a divulgar a produção musical. O Oui Oui Records, de Buenos Aires, também tem boas bandas em seu cast, como o Proto Punk El Perrodiablo, a clássica Acorazado Potemkin e o experimental Fútbol, com a formação trazendo baixo, bateria e violinos. Outros selos locais, Estamos Felices e Scatter Records, também têm importância, sendo que o último é responsável por outro festival, o Music is My Girlfriend, trazendo bandas com sonoridades que vão na onda do Punk, Rockabilly e Surf Music, como Los Primitivos e The Tormentos e formações mais pop como Valle de Muñecas e Bôas Teitas, cheias de referências ao Pop clássico sessentista. Deixando o Rock de lado e adentrando a seara da música eletrônica, o selo ZZK Records é responsável pelo lançamento de DJs e bandas como La Yegros, Fauna, Chancha Via Circuito, Frikstailers e Tremor.

Não há diminuição do movimento em lugares como a Musimundo, megastore local com uma seção interessante de discos, com filiais em vários pontos da cidade e do país. Lojas mais específicas (conhecidas por lá como Disquerias) também existem em bom número, apesar da decadência da indústria musical. Merecem destaque Rock’n’Freud, Oid Mortales, Canta Claro, La Compakta, Livraria El Ateneo e a Bond Street, que é uma espécie de Galeria do Rock em plena Buenos Aires, com disquerias e lojas de acessórios, tatuagem e quetais. As bandas novas e tradicionais seguem vivas e atuantes e orbitando as calles e lugares desta cidade ímpar, tão próxima e tão distante de nós, que é Buenos Aires.

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Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.