Hip Hop: Das Periferias ao Mundo

Estilo que começou nos guetos norte-americanos tornou-se uma linguagem global

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O estilo que começou nos guetos norte-americanos foi ao longo de quatro décadas saindo lentamente de lá e rumando das periferias aos mais diversos lugares do mundo. Esse foi o Rap, que ao longo de todo este período se tornou mais que uma forma de expressão enraizada na cultura afro-americana e se transformou em um idioma global.

Resumidamente, a história funciona assim e faz sentido quando pensamos que estamos em um mundo globalizado e dominado pela Indústria Cultural. Porém, o problema quando se fala no Rap como um idioma global é que ele foi tomado de seu contexto de elemento de identidade do povo afro-descendente e transformado em uma mercadoria, um produto diluído e ressignificado para algo bem distante de seu propósito original.

Esse debate tem aumentado por conta do crescente número de rappers brancos fazendo mais sucesso que artistas negros. Vale ressaltar que a discussão vai muito além de questões puramente raciais, ela aborda todo um nicho de produção cultural e de seus fundamentos mercadológicos, além de análises históricas, contextuais e ideológicas a serem levadas em consideração.

Pode-se dizer que ela ficou ainda mais evidente em tempos recentes quando Macklemore e Ryan Lewis ganharam o Grammy como melhor disco de Rap em 2014, ano em que competiam com Kendrick Lamar e seu Good Kid, M.A.A.D City, franco favorito ao prêmio.

A bola de neve ficou ainda maior quando a australiana Iggy Azalea tomou de assalto a cena com o clipe de Fancy, single eleito pela Billboard como uns dos hits do verão. Paralelamente, os casos em Ferguson também ganhavam notoriedade nos noticiários. O que, à primeira vista, fica evidente é que “muitos consumidores brancos preferiram e ainda preferem consumir a sua música negra sem realmente ouvir a voz dos negros”, diz Adam Bradley, professor de Literatura Afro-Americana da Universidade do Colorado, ou como declarou o poeta B. Easy, “A cultura negra é popular, mas as pessoas negras não”.

“A cultura negra é popular, mas as pessoas negras não”

Esses são os casos mais recentes e notórios, mas não os únicos, do que é chamado de Apropriação Cultural. Esse “embranquecimento da música negra” acontece quando artistas brancos (em teoria, a classe dominante) se apoderam de características culturais dos negros (em contraponto, a classe dominada) e as afastam de suas raízes, tirando daquilo sua identidade e as transformando em algum modismo ou “commodity cultural”. Mais do que a assimilação ou troca entre culturas, a apropriação gera alguns problemas, entre eles tirar daquilo seu real significado e transformá-lo em uma simples tendência comercial desprovida de seu real contexto.

O Rap é só mais um exemplo dessa “desapropriação” musical, que no passado já aconteceu com estilos como Jazz, Rock, Samba e Blues, gêneros que vieram a fazer mais sucesso longe de suas raízes, ou seja, com músicos brancos replicando a música dos negros. Um dos maiores problemas disto, é que quem foi pioneiro e ajudou a pavimentar a estrada para a chegada de novos artistas dentro daquele gênero não tem seu reconhecimento, seja ele financeiro ou cultural. “Certos músicos negros foram passados para trás na hora de usufruir a criação de um novo estilo? Claro. Quando Elvis Presley cantou Hound Dog, ele não tomou para si o dinheiro e a audiência que deveriam ser da cantora original da música, Big Mama Thornton. Ele criou um novo mercado para o público de adolescentes brancos”, diz Bradley.

Segundo o professor, não é possível reivindicar a “propriedade intelectual cultural” e diz que “O Hip Hop foi criado pelos negros norte-americanos, mas não pertence a eles (…) A cultura rejeita aqueles que se proclamam os seus donos. Por isso, o Rap tornou-se um idioma global cujas formas mudam sob a perspectiva de artistas de diversas cores e segundo as regiões onde se manifesta”. Questlove, baterista do grupo The Roots, ainda acrescenta à essa discussão dizendo que “Os negros precisam aceitar que o Hip Hop é uma cultura contagiosa (…) Fancy é, de todas as músicas que ouvi, a mais capaz de mudar o jogo, pois nos força a compreender que o gênero abriu as suas asas”.

O problema quando se fala do tal “embranquecimento do Rap” é que diz-se que muita da substância, da combatividade e do teor social do estilo esteja se diluindo conforme artistas não negros dão suas próprias versões ao gênero. Porém, ainda que o Rap esteja sofrendo com isso agora, o sociólogo alemão Theodor W. Adorno já diagnosticava essa perda da aura nas obras de arte feitas a partir da era da comunicação em massa desde o começo do século 20, em seu livro Dialética do Esclarecimento (1947). Segundo ele, a partir do momento em que qualquer obra entra no terreno da Indústria Cultural é absorvida pela lógica do sistema capitalista, passando ser tratada não mais como arte, mas como mercadoria.

O desdobramento disso implicaria que o processo de criação nada mais seria que o domínio de uma técnica, como diria o filósofo Walter Benjamim em seu A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica (1936), e que esse teor industrial da produção acaba por substituir o olhar humano dentro da arte. A resposta de Adorno é insuficiente, mas o diagnostico feito na época ainda é pode ser tomado como atual, ainda mais quando a Indústria da Música Pop tomou conta dos mais diversos estilos, entre eles o Rap. Uma leitura que pode ser tirada daí, é que essa produção e a apropriação de outras culturas pela Indústria já está prevista pelo sistema, ela é inevitável e aconteceria de uma forma ou outra.

J. Cole, em seu mais recente álbum, 2014 Forest Hills Drive, comenta a apropriação do Rap com a faixa Fire Squad. “History repeats itself and that’s just how it goes/Same way that these rappers always bite each others flows/Same thing that my nigga Elvis did with Rock n Roll/Justin Timberlake, Eminem, and then Macklemore/While silly niggas argue over who gon’ snatch the crown/Look around, my nigga, white people have snatched the sound/This year I’ll prolly go to the awards dappered down/Watch Iggy win a Grammy as I try to crack a smile/I’m just playin’, but all good jokes contain true shit”, diz o rapper em sua polêmica letra.

Em uma entrevista dada pouco após o lançamento, Cole diz que nesta faixa critica não é a liberdade de artistas de qualquer sexo, raça ou religião fazer qualquer tipo de música, mas sim a atenção que estes artistas [brancos] ganham em comparação aos negros. E esta é a grande distorção do mercado. Antes de Eminem, existiram sim outros artistas com letras pesadas e de fluência de versos semelhantes dentro do Rap, mas esses não explodiram com a mesma velocidade ou ganharam tanta atenção da mídia quanto ele. Com Timberlake, também citado na música, acontece a mesma coisa. Ninguém está questionando o talento destes como músicos, mas sim a atenção midiática em cima de artistas que tem sons baseados na cultura negra muito maior que os próprios artistas negros.

O que estamos vendo acontecer agora com o Hip Hop pode ser o mesmo que já vimos com o Jazz. Uma forma de expressão negra em seu ápice que aos poucos foi se espalhando para todos os cantos do mundo e assumindo outras formas a partir do contato com outras culturas. Isso se justifica por questões mercadológicas, afinal, é muito mais fácil se vender música feita por alguém “igual” não só igual a quem tem o controle dos meios de distribuição, mas como quem tem maior acesso a essas obras, no caso a população branca. O que aconteceu com Elvis nos anos 50, acontece agora com Iggy Azelea e Macklemore.

Por outro lado, impedir brancos de criar “músicas de negro”, deveria também impedir o contrário e isso é simplesmente ridículo. “Se os críticos censuram Iggy Azalea, Miley Cyrus ou Robin Thicke porque esses fazem empréstimos de elementos da música dos negros, eles limitam a mesma fonte da genialidade negra: o impulso de usar o passado para inventar coisas novas e o diálogo que força a superação de barreiras raciais”, afirma o professor Bradley. “Proibir Thicke de se apropriar de Marvin Gaye, ainda que ele o faça de maneira medíocre, é o mesmo que impedir retroativamente Afrika Bambaataa, um dos pioneiros do Hip Hop, de usar com brilhantismo a arte do Kraftwerk”, continua. A mesma coisa seria impedir o Rei do Pop, Michael Jackson, de fazer Música Pop, pois, em teoria, essa seria “música de branco”.

E, assim como J. Cole, não estou dizendo que esses músicos não tem talento, eles já se provaram bons no que fazem, mas a questão é ver que a oportunidade para um cantor branco é muito maior que um negro recebe. Esse preconceito sistêmico está enraizado em nós, queira você perceba ou não.

Fora as questões históricas que circundam a situação ou mesmo a propagação de estereótipos raciais, outro problema é ver a tremenda diluição das características do Hip Hop em algumas das produções feitas hoje em dia. Entendo o ponto de vista de evolução estilística, mas não há como fechar os olhos para encapsulamento Pop que o estilo vem sofrendo. A falta de respeito pode gerar visões assimétricas e extremas como esta assumida por um personagem de Kendrick Lamar em The Blacker The Berry.

“This plot is bigger than me, it’s generational hatred
It’s genocism, it’s grimy, little justification
I’m African-American, I’m African
I’m black as the heart of a fuckin’ Aryan I’m black as the name of Tyrone and Darius
Excuse my French but fuck you — no, fuck y’all”

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Autor:

Apaixonado por música e entusiasta no mundo dos podcasts