Sucesso: Música Transformada em Números

“Curtidas” e vendas é mesmo a melhor maneira de medi-lo?

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Alguns de nós até podemos ter uma visão romantizada da música, transformando-a em algo transcendental e imprescindível para nossas vidas, mas não há como fugir da realidade de que ela é sim parte de uma indústria de consumo. Há muito tempo, ela deixou de ser uma representação artística e passou também a ser tratada como mercadoria, sujeita às leis de mercado e todos os meandros impostos pelo capitalismo. A partir daí, criaram-se metas e métricas, impondo à música números a serem atingidos. Entre outras coisas, essa visão mercadológica gerou alguns parâmetros que podem não ser tão facilmente compreendidos. O sucesso é um deles.

Porém, como medi-lo? Até os anos 90, essa pergunta poderia ser respondida mais facilmente, tendo como ponto de partida uma questão puramente mercadológica: o número de vendas das mídias físicas (número de execuções em rádios e pagantes em shows também entravam na equação). Naquele período, a música estava diretamente atrelada ao seu invólucro físico, sendo impossível dissociar o produto real (a música) de sua mídia (seja vinil, fita K7, CD), então, o que movimentava o mercado fonográfico era principalmente o “subproduto” e não a coisa em si. Então, basicamente, quem vendia mais e estava no topo das paradas era considerado o artista mais bem sucedido do momento. Essa lógica de mercado até poderia fazer algum sentido, se não pudesse gerar leituras errôneas sobre sua finalidade.

Como exemplo, vamos voltar duas décadas no passado e tomar esse tipo de termômetro como base para decidir o que fazia ou não sucesso, métrica muito usada pela revista Billboard e outros veículos similares. Suponhamos que um ouvinte fosse a uma loja e comprasse dois discos, A e B. Para esse sistema, o que importa é o comprador sair com seus dois discos em baixo do braço, computando assim mais uma venda para cada um dos títulos. Avancemos no tempo alguns poucos meses. O ouvinte continua com suas duas aquisições em casa, porém o disco A foi tocado à exaustão e não sai de seu discman, enquanto o B está em algum canto de seu quarto juntando poeira. Essa atividade não era refletida nas paradas e aí estava o problema.

Neste sistema, não era levado em consideração se a pessoa comprou o disco e sequer o ouviu, implicando em uma medida, no mínimo, deficiente ou uma visão deturpada do real significado do sucesso, mas já vamos chegar a isso. Outro efeito dessa mensuração de vendas é gerar enormes hypes e criar uma espécie de ciclo retroativo com quem está no topo, vendendo ainda mais aqueles discos que estavam nos primeiros lugares das paradas exatamente por serem os campeões de vendas.

Por mais de seis décadas, essa métrica foi um dos principais termômetros para uma Indústria que mudou vertiginosamente no mesmo período. A fórmula, é claro, sofreu algumas mudanças, incluindo outros meios de distribuição, mas ainda assim é defasada, ainda mais em uma época em que fenômenos como streaming ou mesmo artistas disponibilizando de graça seus álbuns desestimulariam o público a comprar mídias físicas. Vale ressaltar que estes dois itens são sintomas do enfraquecimento do comércio dos discos e não exatamente seus causadores – neste caso, a pirataria seria colocada como a principal vilã da história.

Apesar desse desaquecimento da Indústria Fonográfica, as pessoas não pararam de ouvir música. Inclusive, estamos na época em mais se produz e ouve música, e um dos principais motivos disso é o advento de novas tecnologias que facilitam esses processos. Com a Internet, o status quo mudou e fez a Indústria ter que se moldar ao novo jogo. Se você tem seus 20 e poucos, deve se lembrar da briga entre o Napster e as gravadoras lá no começo dos anos 2000. Aquele foi primeiro de muitos embates que viriam por parte da Indústria para tentar frear algo que começava a ganhar cada vez mais força e que definiria boa parte do cenário musical da década.

Ainda que ilegal, o compartilhamento surgiu como uma ótima plataforma para novos artistas que não estavam na grande mídia ou eram apadrinhados de grandes gravadoras se mostrarem. Ainda que em menor escala, essa capilaridade na rede tornou-se outro parâmetro para mensurar o sucesso, pelo menos em meios mais underground. Seja como centelha da inovação ou chacoalhão às grandes empresas, a Internet surgiu, ao mesmo tempo, como ferramenta e armadilha da música feita em nosso tempo, trampolim para alguns e buraco negro para outros tantos.

O streaming entrou no jogo pouco tempo depois já mudando suas regras e fazendo com as paradas o levassem em consideração. A partir daí, essas métricas até se tornaram mais relevantes, computando o que realmente era tocado, ao contrário daquele disco que você poderia comprar e, meses depois, virar apenas um peso de papel. O serviço surgiu na mesma facilidade do compartilhamento ilegal de arquivos da década passada, porém sem requerer a posse física da música (seja em um CD ou em seu HD).

Por mais preciso que o resultado seja com esses novos parâmetros, o resultado acaba não sendo tão diferente assim do que se via quando a Billboard contava as vendas dos discos há 60 anos. O sucesso estava mais ligado à popularidade do que com o real significado da palavra, que pode sim ter outras interpretações que não esta, diretamente ligada ao lado mercadológico da música. O termo Indústria Cultura, cunhado na já longínqua década de 1920, já diagnosticava essa problemática que se tornaria muito mais evidente dali a alguns anos, a música, ou a arte em geral, sendo medida não por seu valor artístico ou mesmo cultural, mas como produto, resultado de um processo industrial.

Com o passar do tempo, a mesma Internet gerou as redes sociais, o que transformou, em parte, essa métrica de números reais em zeros e uns. O sucesso foi transposto para o número de “curtidas” no Facebook ou seguidores no Twitter, uma métrica igualmente falha e ilusória, ainda mais quando sujeita aos comandos de algoritmos. Como uma faca de dois gumes, essa interface possibilitou sim muitas bandas criarem e se comunicarem com uma rede fãs, levar sua arte aos mais variados cantos do mundo, mas também parece ter tornado alguns artistas reféns destes números. Assim como no passado se buscava o topo das paradas, hoje se busca as “curtidas” e, mais uma vez, o meio se tornou o fim.

Não vilanizando as redes sociais ou mesmo as paradas de sucesso, mas em todos estes casos, me parece que o real produto (a música) fica em segundo plano. Como se isso legitimasse a real qualidade da obra, a busca por estar no topo das paradas, nos trending topics ou nos mais executados é que se tornou sinônimo do sucesso, esquecendo parte do que realmente fazer música significa. E assim como previsto na Indústria Cultural, no fim das contas, todas essas métricas e medidas parecem servir de nada mais do que para transformar números em cifrões.

Mesmo correndo o risco de parecer ingênuo ao dizer isso, a pergunta sobre sucesso feita no início do texto (“como medi-lo”) teria que ser respondida se dando um passa atrás e discutindo o que significa “fazer sucesso”. A discussão gerada a partir daí é potencialmente bem mais interessante do que encarar os fatos sob uma perspectiva enviesada pelo lado mercadológico. Será que o dinheiro é realmente tudo o que importa para os músicos ou esse é só um dos frutos de seu trabalho?

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MARCADORES: Discussão

Autor:

Apaixonado por música e entusiasta no mundo dos podcasts