of Montreal: O Psicodélico Balé de Máscaras de Kevin Barnes

Músico camaleônico já reinventou-se e travestiu-se de si mesmo inúmeras vezes em duas décadas de carreira

Loading

Pode não parecer, mas of Montreal já acumula quase duas décadas de carreira. Com treze álbuns lançados, diversas turnês mundiais e fãs espalhados pelos quatro cantos do mundo, o grupo tem como uma de suas principais características sempre se reinventar, utilizar novos elementos e levá-los ao limite da sanidade, flertando principalmente com psicodelia e a quebra de barreiras que a falta de lucidez pode trazer. Sem uma fórmula ou receita certa para o sucesso, Kevin Barnes e companhia tem como seu principais aliados a imaginação e o poder narrativo para se manter relevante por tanto tempo.

Essa reinvenção acontece com tamanha intensidade, que é como se Barnes trocasse de máscara a cada novo lançamento. A cada novo disco, o músico transveste-se em uma nova persona, ora alinhada à sua própria identidade, ora completamente fora de seu mundo, ora mostrando maior lucidez, ora revelando sua “insanidade”. Essas facetas se acumularam de certa forma como reflexo do próprio músico, criando um interessante paradoxo: quando mais se conhece da obra de of Montreal, menos se sabe sobre o real Kevin Barnes.

Pode parecer viajado ou forçado demais quando colocado assim, mas o próprio músico já se demonstrou ciente disso em alguns de seus álbuns. Dez anos após sua primeira obra, o grupo lançou Hissing Fauna, Are You the Destroyer? (2007), disco conceitual que detalha a transformação do músico em um de seus alter egos, Georgie Fruit. Do meio para o fim do registro, essa persona toma conta de seu corpo, continuando no comando por mais dois lançamentos do grupo, Skeletal Lamping (2008) e False Priest (2010). Assim como David Bowie, Kevin assume nos shows a figura de outro, de um ser imbuído de suas próprias vontades, gostos e que tem um senso diferenciado para arte e moda.

Como parte de um quebra-cabeça, Georgie Fruit é só uma das peças que formam o artista. Mesmo que só como alegoria, o personagem tem sim fundamentos na própria vivência do músico e mostra como seu cotidiano afeta sua forma de escrever e fazer música. O álbum foi composto enquanto Kevin atravessava uma crise pessoal (problemas com sua mulher na época, Nina Aimee Grøttland, e com a depressão), fazendo de si uma crônica no primeiro single desse disco, Heimdalsgate Like a Promethean Curse.

No mais recente show da banda no Brasil, em 2012, esse universo foi explorado de forma surrealista no palco e mesmo dois anos após o fim da saga de Fruit, Kevin voltou a usar sua máscara.

Na sequência, o grupo lançou Paralytic Stalks (2012), disco que quebrava a narrativa em terceira pessoa e trazia de volta Barnes como seu narrador. O disco nasce no mesmo espírito confessional de Hissing Fauna, Are You the Destroyer?, abordando temas mais obscuros, entre eles, a dificuldade enfrentada no seu relacionamento com Nina, tema também presente em seu mais recente disco, Aureate Gloom, lançado nesta semana. A principal diferença de abordagens entre estes dois discos se dá na própria cronologia do relacionamento, que em 2012 agonizava e em 2015 deixou de existir.

O músico trata também de outros temas pessoais e existencialistas, todos sob uma perspectiva musical extremamente expansiva, passeando livremente por terrenos do Pop Psicodélico, Rock Progressivo, além de experimentalismos dentro Country e música erudita pós-moderna. Na parte conceitual, de certa forma, Kevin deixou de Fruit para voltar a ser ele mesmo, porém já não era mais o mesmo que escreveu Hissing Fauna, Are You the Destroyer? ou aquele que lançou os discos anteriores a este. Não só a passagem do tempo justifica essa mudança, mas a própria mutabilidade do músico e seu gosto por se mostrar por detrás de máscaras, uma fachada poética que, ao mesmo tempo, revela e esconde a própria vida do músico.

Seguindo a cronologia, o próximo lançamento foi Lousy with Sylvianbriar (2013), no qual Kevin deixa de olhar (só) para si. Muito comparado às crônicas sociais de Bob Dylan, Barnes reinventa-se de forma mais modesta, portando menos daquela teatralidade megalomaníaca implantada em suas personas desde 2004, com o álbum Satanic Panic in the Attic. Um traço evidente desta mudança, que eu chamaria de drástica, é tornar a obra mais leve se comparada a suas antecessoras. Em sua fase “dylanesca”, o músico se mostra mais lúcido e, ao que parece, menos atormentado pelos seus próprios demônios. Seja como forma de fuga deles (dos demônios) ou somente a vontade de colocar uma nova máscara, o músico ao mesmo tempo que se distância de suas produções feitas na última década, se aproxima de seu longínquo primeiro registro, Cherry Peel, lançado em 1997.

A aproximação vem não em sua plenitude, muito menos pela temática, outrora também focada na figura do narrador e sua infância, mas pela escolha de arranjos mais simplistas, focados nos desdobramentos do Rock sessentista e algumas modalidades do Folk, como Twee e Psicodélico. Além do já citado Dylan, é possível elencar nomes como The Beatles, Neil Young e até Beach Boys como ponto de confluência referencial entre as obras. Até que ponto essa cisão representava uma busca àquela verve inicial do projeto ou somente uma quebra com suas mais recentes produções é difícil dizer, ainda mais de um artista tão multifacetado como Barnes.

Se a obra refletia o que Barnes era naquela época (pouco mais de um ano e meio atrás), o camaleônico músico mudou de máscara novamente para lançar seu novo álbum. Não obstante à nova persona, Kevin mostra-se mais uma vez autêntico dentro de sua premissa de se expor protegido por uma casca estilística e conceitual. O mais interessante é que essa casca desta vez me parece mais fina, mostrando mais da pessoa e não do músico. Talvez, este seja, até agora, o disco que mais chegue próximo de quebrar aquele paradoxo citado no começo do texto, mas esse é assunto para um exame mais detalhado da obra, que virá em breve em nossas páginas.

Certamente, Barnes não demorou sete discos para se diagnosticar como “esquizofrênico musical” e lançar em seguida Hissing Fauna, Are You the Destroyer?, mas esse foi o ponto em que Kevin decidiu abraçar esse seu lado mais teatral e aplicá-lo, talvez, de forma mais consciente em sua música. No fim das contas, a filosofia de Heráclito (conceito da fluidez da matéria), criada há mais de 20 séculos, se aplica perfeitamente na música e, porque não, na personalidade de Kevin Barnes e seu of Montreal.

”Não se pode percorrer duas vezes o mesmo rio e não se pode tocar duas vezes uma substância mortal no mesmo estado; por causa da impetuosidade e da velocidade da mutação, esta se dispersa e se recolhe, vem e vai”

Loading

ARTISTA: of Montreal

Autor:

Apaixonado por música e entusiasta no mundo dos podcasts