New Order: Discografia Impecável

História do grupo inglês revela excelência de seus trabalhos e ansiedade para próximo disco

Loading

Lá no meio dos anos 1980, quando percebi que ouvir música era algo que realmente importava na minha jovem existência, procurei fazer a travessia que separa o terreno da audição do da literatura especializada. Era um tempo sombrio e inimaginável para você, leitorx que nasceu há 20 anos e já pegou um planeta quase todo digitalizado, ao alcance do seu botão de enter. Não era assim e era preciso catar revistas especializadas, as pouquíssimas disponíveis em solo pátrio. A mais promissora naquele 1985/86 era a Bizz, que havia clamado pra si a responsabilidade de municiar o leitor de novidades. Era quase uma unanimidade entre os colaboradores a revista a aprovação àquela tal banda inglesa New Order, da qual eu não ouvira falar até então. Os jornalistas da Bizz diziam que era quase como a volta do Messias, mas que nós, miseráveis brasileiros egressos de 20 anos de ditadura militar, só teríamos chance de ouvi-la se tivéssemos muita sorte ou grana para topar com um programa de rádio que realmente explorasse novas sonoridades ou algum conhecido que viajasse para Londres e pudesse trazer algum álbum do grupo.

Na verdade, esse cenário apocalíptico perdurou por pouco tempo. Em 1986, no máximo, a Warner colocou no mercado nacional o terceiro disco do quarteto de Manchester, Low Life e algumas rádios começaram a tocar a primeira canção do álbum, Love Vigilantes. Era bem interessante, mas passava longe daquele ar novidadeiro, eletrônico, revolucionário e crocante que os escribas deslumbretes da Bizz apregoavam. Minha desconfiança foi pulverizada pouco tempo depois, quando outra faixa foi tocada, Perfect Kiss, totalmente imersa em oceanos cálidos de Eletrônica da mais alta melodia, com sonoridades e detalhes no arranjo, como um inequívoco coaxar de sapos sintéticos lá pra metade final da música. Agora sim. O LP foi devidamente adquirido, assim como seu sucessor, Brotherhood, gravado em 1986 e lançado aqui no início do ano seguinte. New Order agora era preferida da casa.

Não deve ter sido fácil para Bernard Sumner, Stephen Morris e Peter Hook superar a perda de Ian Curtis, naquele maio de 1980. Eram amigos, se conheciam há tempos, sua banda, Joy Division, era querida dos dois lados do Atlântico e agora, com o sucesso do segundo álbum, Closer, aumentando, a tragédia tomava todas as atenções. Certo, a banda se transformaria rapidamente em mito, mas os seres humanos por trás dela precisavam continuar vivendo e tocando. Não demorou muito para que percebessem que deveriam continuar a carreira, especialmente agora, que a sonoridade que perpetravam estava cada vez mais próxima de uma espécie de Eletro-Pós Punk ou algo no gênero. Decidiram lançar um álbum com as canções que ilustravam essa nova direção musical e, com Sumner nos vocais, lançaram o primeiro single, Ceremony/In A Lonely Place e, pouco depois, o primeiro disco, Movement em 1981, que já conta com a presença de Gillian Gilbert, namorada de Morris, assumindo teclados e ocasionais guitarras e backing vocals. Essa adesão dava conta do apreço que os integrantes do grupo nutriam pelas possibilidades dançantes e eletrônicas. O tempo comprovou que estavam certos.

O início da carreira de New Order se apoiou em três pilares. A independência, algo que a banda não conseguiria manter por muito tempo, mas que a credenciou como um grupo diferente, com liberdade criativa e pinta de que só faz o que tem vontade, foi a marca registrada. A existência de duas outras pontas neste triângulo, a saber, o selo Factory e o clube/boate Hacienda, ambos sediados na mesma Manchester, conferiram uma estrutura complexa e interessante, não só a New Order, mas à toda cena musical da cidade, que aproveitou largamente. No caso específico do quarteto, a ideologia presente no selo conferiu ainda mais poder de decisão sobre o produto final, que, fossem LP’s, singles, EP’s ou qualquer outro formato, eram vendidos por preços justos e sem qualquer desejo de obter lucro. Pode parecer surreal e ingênuo, mas é verdade. Além disso, tais produtos eram revestidos com uma aura de imensa modernidade, cortesia das capas concebidas por Peter Saville, que teve suas ideias transmitidas para o mundo por conta dessa produção inicial da Factory.

Quanto a New Order, a identidade musical da banda seria configurada de maneira mais precisa a partir do segundo álbum, Power, Corruption & Lies, lançado em 1983, no qual a sonoridade de guitarras se mostra muito mais adaptada à eletrônica percussiva ou vice-versa. Era algo que se encaminhava para a originalidade total, daquele tipo de artista que é identificado imediatamente quando alguém topa com sua obra. É aqui que podemos afirmar que há New Order e não uma banda com ex-integrantes de outra. O álbum faz sucesso nas paradas independentes, fornece canções belas para o repertório do grupo (Age Of Consent, Your Silent Face) e dá fome de bola nos integrantes para seguir com a simpática rotina de lançar singles que não constam nos álbuns ou mesmo fazer várias versões da mesma música. Uma das mais conhecidas criações de New Order é um single. Blue Monday tem linhas de bateria eletrônica e sintetizadores que significam os próprios anos 1980 para muita gente. Confusion e Thieves Like Us também surgiram neste fértil período de 1983/84 e ajudaram a pavimentar a estrada para que o terceiro trabalho, Low Life, chegasse em 1985 com pinta de campeão e posicionando o grupo como um nome de peso no cenário independente e pronto para passar para o chamado mainstream, pelo menos em termos de cifras e contratos com grandes gravadoras.

A banda recrutou o diretor americano Jonathan Demme para assinar o clipe de Perfect Kiss, que trazia uma versão diferente – e bem melhor – em relação à de Low Life, com o grupo tocando ao vivo no estúdio. Os closes e a não-imagem da banda, coincidindo com as capas dos álbuns e singles, diziam em entrelinhas para que os ouvintes se concentrassem apenas na música, algo que faz todo o sentido. Mais canções do álbum, como Subculture e Shellshock também tiveram boa performance nas paradas mundiais, preparando o terreno para o sucessor, Brotherhood, responsável pelo maior hit mundial do grupo desde então, Bizarre Love Triangle. O álbum tinha canções interessantes mas não era superior ao trabalho anterior, porém serviu para lançar a banda numa excursão pelos Estados Unidos ao lado de Echo And The Bunnymen e preparar os fãs para o lançamento de Substance, tudo isso em 1987. A coletânea dupla de remixes, versões alternativas e faixas obscuras é item essencial na discografia do grupo até hoje, com destaque para a sensacional True Faith, que surgiu como single na época e entrou para o hall de grandes canções da banda. De quebra, o famoso produtor americano Quincy Jones produziu um remix matador para a clássica Blue Monday, que ganhou o singelo nome de Blue Monday 88’.

O lançamento da compilação deu fôlego para que a banda pensasse em como prosseguir em termos estéticos. Era o tempo em que a House Music surgia com força em Chicago e atravessava o Atlântico para dar novos tons às cenas de cidades cinzentas como a própria Manchester e ensoladadas, como a espanhola Ibiza, cuja vida noturna era famosa na Europa e começava a ser conhecida por todo o planeta. Com boates imensas, DJ’s convidados e toda uma lógica própria, a tal “cena de Ibiza” surgiu como influência do próximo álbum do grupo, Technique. Lançado em 1989, o disco chegou ao primeiro lugar na parada inglesa e vinha com abertura de canção totalmente House, no caso, Fine Time. Apesar deste cartão de visitas, o conteúdo de Technique oscilava mais para melodias mais tristonhas, ainda que falassem das agruras existenciais de gente que podia expurgar demônios e tristezas através das ferveções noturnas em pistas de dança, tendo pontos altos em Run 2 e Mr. Disco, com o detalhe inusitado da banda ser escolhida para compor e gravar a canção oficial da seleção inglesa de futebol na campanha da Copa do Mundo de 1990, na Itália. Daí surgiu a esquisita World In Motion, que não fez a Inglaterra melhorar sua fama de time superestimado no cenário mundial.

Em 1993 veio o sucessor de Technique, Republic, que marca o primeiro lançamento da banda por outro selo, no caso, o London, que comprara o falido Factory. Apesar de cravar dois hits mundiais, Regret e World, era possível ver que a fórmula da banda estava gasta. Mesmo que outras canções como Spooky e Ruined In A Day também merecessem atenção por parte do público, a melhor maneira de reciclar fórmulas e tirar férias era dar um tempo. Os integrantes foram tocar projetos individuais mas não se descuidaram e lançaram várias versões de uma coletânea de sucessos chamada The Best Of New Order, além de outra de remixes, The Rest Of New Order, que mantiveram o nome do grupo na mente dos ouvintes e forneceram combustível para clipes e novas versões, uma vez que o quarteto manteve sua simpática mania de fazer novas leituras para canções de sucesso, com novidades e detalhes marcantes. Assim foi com 1963, lançada em 1987, mas que ganhou duas novas versões e tornou-se hit em 1994/95.

Este intervalo durou cinco anos, com a banda se reunindo em 1998 para pensar num novo lançamento. O resultado veio em 2001, com a chegada de Get Ready, um disco atípico no catálogo do grupo, muito mais voltado para guitarras que para sons eletrônicos. Independente do resultado – bom, afinal – o disco serviu para o novo milênio receber um nome laureado da chamada cena independente, que, inegavelmente ganhara novo significado com o passar do tempo. Canções como Crystal, Here To Stay (que figurou na trilha sonora do filme 24 Hour Party People, em homenagem à cena oitentista independente de Manchester) e 60 Miles An Hour mostraram que o quarteto não perdera a mão. Quatro anos depois veio outro álbum, Waiting For The Sirens Call, o primeiro sem Gillian Gilbert desde o início dos anos 1980. A tecladista deixou a banda para cuidar dos filhos que teve com Stephen Morris e foi substituída por Phil Cunningham. Deste disco vem a adorável Krafty, além da faixa-título e de Jetstream, hits respeitáveis ao redor do planeta e que mantiveram a marca da banda viva. Também em 2005, veio Singles, mais uma coletânea dupla, atualizando a contabilidade de sucessos mundiais de New Order e, no ano seguinte, o DVD Live In Glasgow. Desentendimentos entre o baixista Peter Hook e o guitarrista/vocalista Bernard Sumner tiraram o sono dos fãs, que lamentaram a saída do primeiro, responsável por uma das marcas sonoras registradas do grupo. Pouco tempo depois, Sumner disse que a banda estava separada. Mas ainda havia lenha para queimar.

Três anos depois, New Order estava reunido. Gillian Gilbert voltara e o baixo foi assumido por Tom Chapman, que integrou o projeto paralelo Bad Lieutenant, que Sumner montou em 2009, no qual também estava Phil Cunningham. Falando em projetos paralelos, não são poucos. O mais famoso é Electronic, montando por Bernard Sumner em 1988, ao lado de Johnny Marr, que originou um sensacional disco homônimo em 1990, além de outros dois ao longo dos anos 1990, antes de encerrar atividades. Peter Hook montou Revenge em 1989 e Monaco em 1996, tocando e colaborando com vários músicos ao longo do tempo, enquanto Stephen Morris e Gillian Gilbert vieram com The Other Two, que rendeu dois álbuns sem muito alarde, em 1993 e 1999.

Em 2012, New Order anunciou o lançamento de Lost Sirens, oito canções que teriam sobrado das sessões de Waiting For The Sirens’ Call e que serve como referência para a chegada do novíssimo álbum, Music Complete, o primeiro sem a presença de Peter Hook desde o início do grupo, em 1981, e com lançamento previsto para 25 de setembro próximo. Engraçado pensar em New Order como uma banda com 35 anos de carreira, sempre com seu nome atrelado a inovações na música, além de significar certeza de qualidade. Ao longo de sua trajetória, é possível dizer que não há um único álbum ruim lançado pelo quarteto, o que aumenta ainda mais a ansiedade pela chegada do novíssimo trabalho.

Loading

ARTISTA: New Order
MARCADORES: Redescobertas

Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.