Rindo à Toa: Os Mutantes e sua “Divina Comédia”

Disco completou 45 anos e permanece uma ode atemporal à Psicodelia e ao bom humor

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Sabe aquele disco lançado há algum tempo que você carrega sempre com você em iPod, playlist e coração, mas ninguém mais parece falar sobre ele? A equipe Monkeybuzz coleciona álbuns assim e decidiu tirar cada um deles de seu baú pessoal e trazê-los à luz do dia. Toda semana, damos uma dica de obra que pode não ser nova, mas nunca ficará velha.

A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado

Comentar a importância de Os Mutantes no Rock brasileiro chega a ser redundante nos tempos de hoje, dada a relevância que o grupo possui não só em seu próprio território como o lugar comum alcançado em discussões estrangeiras sobre a nossa música. A Tropicália não seria a mesma sem a participação de Rita Lee, Sergio Dias e Arnaldo Baptista. Logo, não precisamos entrar nesses detalhes quando discutimos uma das maiores obras de sua discografia, A Divina Comédia Ou Ando Meio Desligado, – disco que revela em seu título uma das características mais marcantes do grupo: a sua acidez.

A inspiração na famosa obra de Dante Alighieri, A Divina Comédia, passa também pela capa do título, uma encenação do trio na casa dos irmãos Baptista, e mostra irônicamente que o som poderia ser muito mais pesado. Grande engano, pois, dentre todas as suas faixas, a única que poderia ser considerada mais obscura é Ave, Lucífer – uma jornada de Rita Lee pelo Inferno em busca da cabeça do símbolo do satanismo. Aliás, a prova que esta obra é constantemente revisitada e atemporal pode ser conferida no sample que o lado rapper de Flying Lotus, Captain Murphy usou em The Killing Joke. Todo o resto do disco é seguido por gargalhadas e sorrisos.

A forma com que Os Mutantes desconstruiu a música brasileira e aplicou suas influências roqueiras é percebida do começo ao fim de seu terceiro disco e mostra uma tendência forte ao Blues Rock de nomes que estavam despontando no cenário global, como Led Zeppelin e Janis Joplin. A famosa cantora norte-americana é emulada por Rita Lee em um dos momentos mais bonitos do disco, Meu Refrigerador Não Funciona. A faixa captura o poder da voz feminina em uma levada religiosa que deixa o ouvinte em transe logo nos primeiros momentos. Ao final, o bom humor ácido típico do grupo desponta no refrão, que revela o motivo de tanto sofrimento na canção – o refrigerador simplesmente não funciona enquanto Arnaldo vocaliza suas viagens internas de forma onomatopéica.

O cotidiano de um jovem rico é composto em Hey, Boy, passeando pela Rua Augusta com sua mesada, um blusão importado e uma vida de abonado. Ouvir a canção mostra que alguns grupos atuais, como O Terno, poderiam ter inspirações diferentes se o trio não tivesse aplicado sua psicodelia ao Rock brasileiro no fim dos anos 1960. O convite à dança aparece em Preciso Urgentemente Encontrar um Amigo, canção composta por Roberto Carlos e Erasmo Carlos, enquanto Quem Tem Medo De Brincar De Amor faz graça com uma letra em português cantada com sotaque de estrangeiro. As faixas seguem uma estética psicodélica própria, muito mais próxima aos primeiros momentos de Pink Floyd do que a talvez a grande influência do grupo, The Beatles.

Efeitos sonoplásticos, quebras abruptas de ritmo e melodias que brincam com os sentidos do ouvinte passam pelo disco revelando a Divina Comédia de seu título, uma rota mais psicodélica que a espiritual encontrada pelos três tomos do livro: Inferno, Purgatório e Paraíso. A travessia começa em seu grande sucesso, Ando Meio Desligado, canção que já se tornou uma memória permanente na música brasileira e que tem em sua percussão e teclas a forma perfeita para fazer o ouvinte levitar. Lá pela sua metade, o cover do símbolo folclórico Silvio Caldas em Chão de Estrelas coloca o grupo perto das origens mais interiores da MPB no Purgatório e transforma-se ao final em uma verdadeira apresentação de comédia. O Paraíso aparece em Haleluia, faixa que não nega suas influências Gospel e tentar ser “séria” em meio a tanta ironia.

Ouvir A Divina Comédia Ou Ando Meio Desligado pode nos revelar diversas coisas ao seu fim, como a inegável importância de Os Mutantes para tudo que vivenciamos hoje em dia na música, mas também uma marcante lição de um disco que completou 45 anos em março: em períodos de crise e ditaduras, o grupo conseguiu levar com bom humor influências externas musicais e as incorporou à história musical do nosso país. Misturou boas lições sem se esquecer de suas origens e, por isso, permanece um disco atemporal, rico e com o melhor ácido que a banda poderia oferecer aos seus ouvintes – o riso.

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ARTISTA: Os Mutantes
MARCADORES: Fora de Época

Autor:

Economista musical, viciado em games, filmes, astrofísica e arte em geral.