Dez Anos Mais Pop – Devendra Banhart e seu “Cripple Crow”

Disco que colocou músico no mapa completa seu décimo aniversário

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As coisas não acontecem por acaso. Veja o caso de Devendra Banhart, por exemplo. Nascido em Houston, Texas, em 1981, filho de pai americano e mãe venezuelana, ambos hippies, ele teve seu nome indicado por um guru indiano, uma espécie de guia espiritual dos pais. A família mudou-se para Caracas e lá Devendra passou sua infância e início da adolescência, justo quando sua mãe, que havia se separado, casa com outro americano, e, juntos, mudam-se novamente para os Estados Unidos, desta vez para a Califórnia. É evidente que o jovem teve uma educação não convencional, aprendendo muitas coisas em casa, sendo apresentado desde cedo a artes e música. Logo, não tardaria a empunhar um violão e arriscar-se em suas primeiras interpretações e, mais importante, suas primeiras composições.

Ao fim dos anos 1990, Devendra já era um habituê dos distritos gays de São Francisco e desenvolvia tranquilamente sua música. Sempre interessado na Psicodelia dos anos 1960, no Folk e em coisas exóticas – para os americanos – como Os Mutantes, Gilberto Gil e Caetano Veloso, o jovem não se fazia de rogado para tocar seu violão, cantar suas músicas e conceder suas famosas e intensas interpretações. Não é novidade imaginar que, pouco tempo depois, em 2001, após uma temporada mochilante em Paris, ele já seria contratado de uma gravadora, lançando seu primeiro disco Oh Me Oh My no ano seguinte.

Como muitos artistas iniciantes, Devendra chegou ao quarto álbum com uma necessidade enorme de expandir horizontes sem modificar a essência de sua música. Não era missão simples, uma vez que os trabalhos anteriores, discos e EPs, mostravam que tudo parecia no lugar e sem excessos, constituindo o que os rotuladores da música do início do milênio entendiam como Psych Folk ou Freak Folk, ou seja, música esquisita feita por gente estranha com violão em punho, falando sobre alienígenas, fadas, gente comum, gente incomum e absurdos de todos os tipos, mas com cara e jeito de música que sempre ouvimos na vida, fazendo sentido. Com a chegada de uma nova gravadora em sua vida, no caso, a XL Records, Devendra decidiu ousar e tentar um vôo mais alto. Pensou num álbum psicodélico clássico, com referências lá nos anos 1960 e sua cultura das drogas como meio de expansão da mente e facilitador de performances e composições, mas pensou em como poderia fazer com que orquestras, arranjos elaborados e ousadias estéticas dessa natureza poderiam soar em seu mundo tão peculiar, sem que corresse o risco de uma descaracterízação irreversível. O que Devendra queria era uma “mutação controlada”. E ele conseguiu.

Quando Cripple Crow chegou aos ouvidos da crítica e do público, era notável a evolução de Devendra como cantor e compositor. Os arranjos de cordas e metais foram incorporados de maneira intrínseca às canções, com naturalidade e gentileza. Em Heard Somebody Say, por exemplo, um piano conduz a melodia com um simples fraseado, enquanto violão, bateria, baixo e a orquestra entram sutilmente na melodia, abrindo espaço para uma voz melancólica de tarde nublada atemporal, falando sobre guerra, paz e contradições. Lazy Butterfly é o outro lado da moeda, hippie, indigente por opção, com percussão aleatória, algumas cítaras ao longe e um vocal que parece saído de um gentil – mas opressor – pesadelo. E Queen Bee é uma espécie de último vértice do triângulo, portando-se como uma canção de ninar, mas esquisita o bastante para não deixar ninguém dormir. Há, claro, músicas cantadas em espanhol, a língua mais familiar ao sujeito. Santa Maria de Feira tem uma cadência de cantiga de roda, mas é levada só ao violão, com sutis intervenções de flauta e percussão, esbanja uma latinidade não-canastrona, que soa bela e exótica na medida certa. Quedate Luna é outro bom exemplo de ode aos povos ibéricos, mas dessa vez imersa em bebida barata, bebida por pobres diabos que se espremem numa espelunca qualquer e que vêem a lua fazendo sombras misteriosas no chão de pedras da vila. E uma cançoneta chamada The Beatles em espanhol e inglês, leva o quarteto de Liverpool a passear num universo de touradas, flautas, balões e crianças brincando depois do almoço. Tudo, inexplicavelmente, bem amarrado e fazendo sentido.

Outra ousadia interessante no álbum está em sua duração. São mais de hora e quinze minutos, divididos em 22 canções, sem mencionar as oito faixas-bônus que estão na versão de luxo, em LP duplo. A melhor canção de Cripple Crow surge mais para o fim do percurso, a singela Mama Wolf, com melodia Folk ancestral e interpretação que parece a de alguém ladeando uma estrada na qual não passam carros há dias e você espera ansioso por alguma providência divina enquanto apela para a pessoa amada e a Natureza ao mesmo tempo.

Quando Devendra lançou o disco, há dez anos, sua carreira tornou-se mais ampla, concedendo a fãs e crítica a chance de considerá-lo um artista capaz de entregar, além da poderosa interpretação e da ourivesaria nas composições, surpresas, sonoridades, sutilezas, fru-fru’s e demais acepipes discretos que só os grandes são capazes de enxergar e valorizar. O disco teve excelente desempenho, levou o sujeito para um outro nível artístico e o colocou em evidência quando se trata de mencionar herdeiros policulturais do Folk, unindo passado e presente sem qualquer restrição, se dando ao luxo de ver o futuro surgir no fundo de um copo vazio, outrora ocupado por whisky barato. Assim é Devendra neste momento da carreira, felizmente documentado com exatidão por Cripple Crow.

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Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.