Elza Soares e o Mundo Cão

Veterana cantora carioca tem um dos melhores discos de 2015

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Antes de mais nada, antes mesmo de começar a ler o texto: vá agora ouvir o novo disco de Elza Soares, A Mulher do Fim do Mundo. Sério, vá lá, pode fazê-lo mesmo enquanto passeia os olhos pelas palavras que aqui vão tentar provar que a audição é mesmo necessária neste 2015. Não vá pensando que será uma tarefa simples, o álbum é bastante complexo, não há uma única canção “Pop” por aqui, é uma sucessão de crônicas do chamado “mundo cão”, da vida como ela é, das maldades/infortúnios que presenciamos/vivemos por aí, enquanto batemos ponto nesta existência terrena. E, sim, este disco é totalmente humano, no mau sentido da parada. Talvez só a mensagem de tenacidade que Elza transmite nessas canções, do alto de seus 75 anos de idade, que envergam um prontuário de perdas e danos pra lá de extenso, conferindo autoridade e conhecimento de causa para a empreitada. E estas canções foram compostas tendo a veterana cantora em mente, inéditas, algo inédito em sua carreira.

Não guardo lembrança precisa da primeira vez que ouvi algo de Elza Soares, mas recordo com nitidez da audição de Língua, canção de Caetano Veloso, cujos vocais ele divide com ela. Era – como a própria letra fala – um “samba-rap-chicleft com banana”, na verdade, uma dessas análises de conjuntura que o velho compositor baiano se arvora a gravar de tempos em tempos. Elza surge com suas vocalises, seu vozeirão divide a bola com Caê e dá estofo ao caráter internacionalista da música, uma vez que a cantora tem DNA forjado na encruzilhada do Jazz e do Samba, lá na aurora da Bossa Nova, antes mesmo dela acontecer. Elza subiu ao palco do show de calouros de Ary Barroso – sim, o compositor de Aquarela do Brasil – aos 12 anos, lá em 1952. Estava com roupas remendadas e sandália emprestada da irmã e foi alvo de certa zombaria por parte de Barroso. Ao fim da interpretação, o velho não teve outra escolha a não ser bradar: “nasce uma estrela”. Não foi bem assim, apesar da carreira de Elza já ultrapassar 60 anos de duração.

Neste espaço de tempo, ela casou várias vezes, teve casos amorosos (o mais famoso com Mané Garrincha – que era casado), foi mãe aos 13 anos, perdeu e ganhou dinheiro, passou fome e forneceu ao mundo a sua intuitiva visão da música, meio Padre Miguel – subúrbio da Zona Oeste do Rio de Janeiro, onde nasceu – meio planeta Terra. A vida nos palcos não conferiu tranquilidade a Elza, que jamais foi algo próximo de uma cantora famosa ou unanimidade de público/crítica. Sempre foi sabido que ela tinha o mais precioso bem quando falamos de algum intérprete: personalidade. É possível identificá-la rapidamente, mesmo antes de rasgar a voz, uma de suas marcas registradas desde sempre. O tempo revestiu sua rouquidão com sofrimento, levou essa inclinação por malabarismos vocálicos e substituiu por marcas indeléveis do passar dos dias. É quase uma cantora de Blues/Samba, se isso existir.

Verdade que Elza vem fazendo discos interessantes no século 21. Em 2002, Do Cóccix Até O Pescoço a recolocou no mapa musical nacional depois de muito tempo nos subterrâneos das churrascarias e casas de espetáculo de gosto duvidoso. O álbum trazia colaborações de gente como Chico Buarque, Caetano Veloso e Jorge Ben e inaugurava um abraço da cantora à música Eletrônica, além de voltar seus olhos de uma forma mais crítica ao cotidiano. De lá pra cá, ela gravou mais três álbuns, um deles ao vivo, sem reeditar o êxito de crítica e público do disco. Agora, com o novo trabalho, além de colecionar opiniões positivas de forma unânime, Elza prepara-se para cair novamente na estrada ao redor do mundo.

A Mulher no Fim do Mundo é mesmo uma cacetada na orelha. Sua origem é totalmente paulista, fruto da reunião de gente como o guitarrista Kiko Dinucci, o cantor compositor Rômulo Froes, o baixista Marcelo Cabral e vários integrantes do grupo Bixiga 70. Na produção está Guilherme Kastrup, baterista e percussionista. A ideia dessa galera foi pensar num álbum que contemplasse esse drama diário do cotidiano urbano do país (e do mundo), no qual há espaço para violência doméstica, preconceito de toda forma, pobreza, opressão, desesperança, tudo isso num remix de sorriso amarelo, sofrimento e tentativa de levantar todo dia e pensar numa maneira de chegar até a hora de dormir mais ou menos inteiro. Para isso, músicos e produtor revestiram as canções e arranjos com uma mistura vibrante de música negra contemporânea, do Samba ao Rap, passando por Jazz e Blues, procurando recriar em som essa vida duríssima das cidades. Deu certo.

Canções intensas, com arranjos meticulosos compõem a totalidade do álbum e não dão alívio para o ouvinte. Não há um sambinha leve, uma levadinha dançante, a parada é, como diria o poeta, sinistra, cabulosa, escolha seu sinônimo local e entenda do que se trata. Elza fala de navios negreiros, metáfora poderosa ainda hoje, para falar de como os contingentes empobrecidos da população, negros de pele e/ou sociais, são tratados. As mulheres, os transgêneros, as crianças, as minorias, todas elas vitimizadas em diferentes escaladas, são contempladas por cacetadas como Benedita, Maria da Vila Matilde, a faixa-título ou a arrepiante abertura à capella de Coração do Mar, um poema de Oswald de Andrade, devidamente – mas não totalmente – musicado. Quando há espaço para sexo ou afeto, ele vem na forma de Pra Fuder, canção que fala de desejo como se fosse um instinto e nada mais, com zero espaço para amor ou algo no gênero. Luz Vermelha é autoexplicativa, Dança é um lamento além-túmulo. Comigo é o fim do caminho, com silêncio, ruído crescente, silêncio novamente. E a voz de Elza.

Ela já iniciou a turnê nacional do novo álbum, viajando com a banda que se formou especialmente para sua gravação. É uma figura do século passado, dessas que talvez não mais existam no mundo de acordo com o caminho que estamos seguindo, vá saber. Se puder, vá vê-la ao vivo. E o disco? Vá lá catá-lo na internet, é fácil de achar e ouça tudo, de preferência com as letras. E depois se recupere da pancadaria doída, mas absolutamente necessária.

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Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.