A Melancolia Marota de Tindersticks

Grupo inglês se notabilizou por canções melancólicas, românticas e sombrias

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Coisas do século 20, este misterioso tempo sem Internet: quem gostava de música fora do esquemão comercial de sempre precisava de seus refúgios secretos em termos de lojas de disco. Eu tinha alguns, um deles, a querida Spider, que ficava numa galeria simpática em Ipanema. A especialidade da casa, pequena, escondida no segundo andar do prédio, era Britpop e Música Eletrônica. Na época eu tinha especial atração pelos singles de Oasis, que o dono da Spider fazia materializar ali, direto de Londres. Ele ligava pra casa dos frequentadores mais fiéis quando chegava uma nova remessa de lançamentos, algo que era celebrado efusivamente por aqui, mesmo que significasse um gasto além do normal às vezes. Lembro que, numa vez dessas, além do single do quinteto de Manchester, sobrou verba para a aquisição de mais alguma coisa e ele me indicou Tindersticks, dizendo: “olha, isso aqui é diferente, é bem legal, mas não é Rock, muito menos Eletrônica, mas você vai ouvir e gostar”. A capa trazia uma foto em preto e branco de um sujeito estranho, a primeira música chamava-se El Diablo En El Ojo e nada era minimamente semelhante ao que eu estava acostumado a ouvir na época. Agradeci a boa vontade, mas declinei da sugestão (a gente ainda podia ouvir os discos na própria loja pra decidir se levava ou não). Este foi meu primeiro contato com esta simpática – e estranha – banda de Nottingham.

Hoje, cerca de 20 anos depois, olho pra este episódio com humor. A Spider não existe mais, porém eu gosto – e muito – da música do grupo. Seu líder, Stuart Staples, é um meticuloso cronista dos porões da alma. Trata dos efeitos da melancolia, inerentes ao ser humano urbano contemporâneo com precisão matemática, sob a forma de letra/música. Seus cenários nunca são ensolarados, simpáticos ou bem frequentados. Prefiro sempre imaginar situações como uma festa da firma na qual você não quer estar, um bingo em que você vai pra prestigiar o seu tio-avô ou mesmo um batizado de alguma criança da família da sua/seu namorada/o, no qual você tem que ir pra fazer média com o pessoal. Tais situações são até ingênuas e pouco tristes se comparadas com o cenário que Staples propõe: acabou-se tudo, a pessoa que você amava se foi, você é estranho, a culpa é só sua, a danação eterna é o seu lugar. Mais ou menos isso. E, como se não bastasse, de alguma forma maluca, há espaço para humor na coisa toda. Nigérrimo, é claro.

Há pouco menos de um mês fiz a resenha do novo e sensacional álbum dos sujeitos, The Waiting Room. Não há muitas alterações entre a sonoridade daquela banda que me causou tanta estranheza há vinte anos e o que fazem hoje. Engraçado notar que foi o estouro do Britpop que viabilizou a carreira de Tindersticks: a partir da abertura de espaço para bandas e artistas ingleses naquele início de anos 1990, o grupo de Nottingham encontrou seu caminho nos meios alternativos e há razão clara pra isso. Se o romantismo sombrio que cultivam não é novidade – há influência clara de gente como Scott Walker, Tom Waits, Leonard Cohen e The Velvet Underground – sua forma de expressão era algo inédito. Em meio a tantas estrelas independentes surgindo, Tindersticks também era adepto desta nova tendência, não era vinculado a nenhuma gravadora e tinha muito a apostar na época. Em dois anos, mais precisamente, no fim de 1993, o primeiro álbum da banda, homônimo, recebeu o prêmio de Melhor Disco do Anos, conferido pelo prestigioso semanário inglês Melody Maker. Lembrem-se que Oasis, Blur, Suede, entre outros, eram competidores diretos nesta disputa.

A tradição do romantismo dark é longa. Abrange gente dos dois lados do Atlântico, de Roy Orbison aos já citados anteriormente, gente que se dá mal antes, durante e no final das situações. A inevitabilidade do destino é tamanha que tiradas de sarro e humor negro são instâncias certas, principalmente se você é integrante de uma banda novata em 1992, caso de Stuart Staples e seus amigos. Com estas credenciais, Tindersticks seguiu adiante ao longo dos anos 1990, audaciosamente indo onde nenhuma banda de sua geração ousava ir. Estavam todas muito preocupadas com encher estádios e fazer clipes para a MTV. Havia outras, claro, todas menos conhecidas, com exceção de Pulp, que tangenciava esse lado negro da Força. The Divine Comedy também ciscava neste terreiro, porém, com muito mais humor e uma aura de filme de espionagem em suas canções. Audição recomendadíssima, portanto.

Em pouco tempo, mais precisamente, em 1996, o grupo adentrou o terreno das trilhas sonoras para filmes obscuros e cabeças. Algo que também nunca mais deixaram de fazer, começando com Nenette Et Boni, da diretora francesa Claire Denis, com a chance de sonorizar ambientes e ocasiões interessantes, como no caso de Ypres, lançado em 2014, que traz música composta pelo grupo especialmente para uma exposição permanente de arte no no Flanders Field Museum, na Bélgica. A carreira regular dos sujeitos, no entanto, nunca deixou de acumular prêmios e bons lançamentos. A partir de Simple Pleasure, quarto álbum, lançado em 1999, Tindersticks começou a olhar com carinho para os sacrossantos passos da Soul Music, aproximando sua narrativa nublada dos fraseados mais imaculados. O resultado trouxe nova dimensão para a música do grupo, exemplificado logo nos álbuns seguintes, caso do emblemático Can Our Love…, de 2001, configurando uma guinada inesperada e muito bem vinda. Quatro anos depois, Stuart Staples iniciou uma carreira solo, que já conta com dois álbuns lançados, Lucky Dog Recordings 03-04 (2005) e Leaving Songs (2006), movimento que suscitou dúvidas sobre a continuidade do grupo, boato logo desfeito pelos integrantes.

Os últimos anos têm sido movimentados para Tindersticks. Com o vigésimo aniversário completado em 2013, o grupo regravou algumas canções de seu repertório no comemorativo registro Across Six Leap Years, enquanto se aprontava para os próximos lançamentos, que seriam, os já mencionados Ypres e o último trabalho, The Waiting Room, que contem algumas sensíveis modificações em relação ao que sempre fizeram, cujo grande e emblemático exemplo está no inesperado arranjo Afrobeat para Hello Yourself. Além disso, fruto da proximidade da banda com trilhas de cinema, cada canção do álbum recebeu uma abordagem visual de vários diretores, ganham uma dimensão inédita na carreira do grupo e, de certa forma, aproximando suas duas áreas de atuação.

Se você quiser se aventurar nos álbuns de Tindersticks, aceite a sugestão de Monkeybuzz: vá do mais recente para o mais antigo, procurando compreender a evolução desta sonoridade tão preciosa e delicada. Você não vai ouvir beats dançantes, guitarras altas, programações eletrônicas ou algo no gênero. A ideia aqui e promover um encontro doce e à meia luz com seus demônios, arrependimentos e desejos. Quando estiver pronto pra isso, caia dentro.

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ARTISTA: Tindersticks
MARCADORES: Redescobertas

Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.