PJ Harvey Em Alguns Discos

Inglesa é uma das presenças femininas mais fortes dos últimos anos

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Farei aqui um exercício antropo-roqueiro. Se Luís Inácio Lula da Silva fosse familiarizado com a obra da cantora e compositora inglesa Polly Jean Harvey – ou PJ Harvey -, provavelmente a consideraria uma “mulher de grelo duro”, termo que ele usou há pouco tempo para aludir a características de renitência, disposição pra luta e outros atributos que as mulheres de fibra devem ter. Não que algo de terrível tenha acontecido a ela, mas sua carreira contém um grande número de álbuns memoráveis, que a caracterizam como uma das mais talentosas forças artísticas em atividade no mundinho da música popular deste fim/início de milênios. Mais ainda: PJ, não tem um registro menos que bom em sua trajetória, com certos picos criativos em que, discretamente, tornou-se a mais importante cantora de sua geração em atividade. Agora, depois de seis anos, PJ lança disco novo em alguns dias, mostrando que está viva, bem e criativa.

A primeira vez que ouvi falar de PJ Harvey foi em meados dos anos 1990, mais precisamente em 1995, quando ela lançava o terceiro álbum, To Bring You My Love. Já lera na finada revista Showbizz algo sobre o trabalho anterior, Rid Of Me, lançado dois anos antes, com a produção do então badalado Steve Albini, o mesmo homem que havia pilotado as gravações de In Utero, o derradeiro álbum de Nirvana. Como quase tudo o que era lançado naquele tempo, Rid Of Me continha guitarras altas, entremeadas por silêncios, pausas bruscas e o potencial catártico alto. Em vez de um Kurt Cobain atormentado pela fama, o microfone estava a cargo de uma diminuta inglesa, natural de Yeovil. Dona de voz marcante e uma imensa força simbólica, PJ marcava seu território fora da Inglaterra e To Bring You My Love tinha a missão de sucedê-lo. Enquanto todos esperavam mais esporro e afirmação por parte dela, a moça entregou um álbum bastante distinto, aproveitando a boa vontade com sua presença para exercitar certo charme interpretativo até então oculto. Substituiu boa parte de sua tendência por uma crueza Janis Joplin/Patti Smith por algo que poderia ser uma versão Punk de Stevie Nicks, a vocalista de Fleetwood Mac ou uma Chrissie Hynde repaginada para os 1990’s. Mas ainda havia algo da inteligência de Patti presente – e sempre vai haver, em se tratando do trabalho de P.J – que delineava claramente a ironia da coisa, das interpretações, da maquiagem, da sensualidade que ela oferecia então. Na produção, em vez de Albini, estava Flood, baixista, sujeito versado nas artes da música eletrônica, um dos fiadores da mutação de U2, remixador de várias bandas e artistas de então.

PJ entrou, de fato, no mapa mundi musical a partir deste terceiro álbum e emplacou canções como a faixa-título, Long Snake Moan e o não-hit Down By The Water e a parceira produtiva com Flood mostrou-se muito eficaz, tanto que ela viria a se repetir algumas vezes mais para frente. O interessante em minha relação com a obra da moça é que ela nunca foi constante. Visitei seus álbuns de tempos em tempos, e nunca de forma uniforme. Meu interesse por ela ganharia novo fôlego anos depois, mais precisamente, em 2000, quando veio seu sensacional Stories From The City, Stories From The Sea. Quinto trabalho da cantora, ele foi lançado após sua temporada de seis meses vivendo em Nova York e teve a produção de Mick Harvey, Rob Ellis (seu parceiro de longa data) e dela mesma. Contrastando a visão da Grande Maçã com o delicado cafundó inglês de Yeovil, o disco trouxe pequenas reflexões de PJ sobre vários temas e mostrou-se com pinta de campeão nas paradas de sucesso alternativas. Não chegou a superar a excelência Pop esquisita de To Bring You My Love, mas rendeu a ela indicações para o Brit Awards e um Mercury Prize em 2001, algo que seria igualado por Let England Shake, seu álbum de 2011. Ela aceitou a honraria por telefone, uma vez que estava num quarto de hotel em frente ao Pentágono, em cuja janela testemunhara os atentados terroristas ao centro de inteligência militar americana horas antes, naquele 11 de setembro estranho e mal explicado até hoje.

Let England Shake foi, inclusive, outro destes álbuns que acompanhei mais de perto. Oitavo da carreira de Polly, ele chegou com grande alarde em 2011, como a primeira incursão política da moça, influenciada duplamente por conflitos no Oriente Próximo e Médio: os conflitos recentes entre americanos e antagonistas no Afeganistão e Iraque e a Batalha de Gallipoli, travada entre ingleses e turcos, durante a Primeira Guerra Mundial, vencida pelo Império Turco-Otomano. Na cabine de produção estava Flood, de tantas glórias e tradições, que conseguiu conferir uma sonoridade única para as canções, que, segundo Polly, haviam partido das reflexões sobre as disparidades entre árabes e ocidentais e, ao mesmo tempo, das características comuns a ambos, bem como da musicalidade de bandas como The Doors e The Velvet Underground, identidades que Flood soube misturar e administrar muito bem. Além disso, a voz de P.J está diferente, transitando entre a inocência verdadeira e a raiva, algo que, segundo consta, é essencial em discos que procuram esmiuçar algum viés político. O álbum foi gravado ao longo de cinco semanas numa igreja, algo que pode justificar sua sonoridade distinta. O primeiro single, The Words That Maketh Murder, é, simplesmente, uma das melhores canções já gravadas por Polly Jean. Resultado, como já contamos acima: outro Mercury Prize e inclusão em várias listas de melhores de 2011.

O último disco de PJ Harvey a me impressionar veio, justamente, com a incumbência de escrever este artigo sobre sua obra. Reouvi os que conhecia e me apresentei aos inéditos, me encantando imediatamente com o espectral White Chalk, álbum que ela gravou em 2007. É impressionante o tom que ela e Flood, junto de outro parceiro de longa data, John Parish) conseguem aqui. Em meio a uma mutação fada-fantasma-criatura da floresta, Polly mergulhou em sonoridades acústicas, dedilhadas, florestais, algo que jamais fizera. É também sua estreia ao piano, instrumento que serve como pilar das composições, bem como seu fio condutor. A impressão que o álbum passa é única e ele certamente foi muito ouvido e apreciado por artistas como Florence Welch, que deve ter mergulhado em sua atmosfera. O single When Under Ether puxou as vendas, mas White Chalk é desses trabalhos para ser apreciado na integridade.

A meta agora é me atualizar completamente em relação à obra da moça para que a chegada do próximo e inédito álbum, The Hope Six Demolition Project, gravado novamente com a produção de Flood e John Parish, após viagens por Kosovo, Afeganistão e Washington, ao lado do fotógrafo Seamus Murphy, entre 2011 e 2014. Polly soube manter-se em evolução constante, talvez nem tenha pensado nisso como algo a ser executado conscientemente, ela simplesmente tornou-se gigantesca, tamanha a beleza de seus trabalhos. Preparem-se porque, como já dizia o velho teorema, há anos mais mágicos que outros, aqueles que assistem a lançamentos de álbuns inéditos de PJ Harvey.

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MARCADORES: Redescobertas

Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.