Underworld e Duas Décadas de Carreira Superlativas

Uma geral na carreira da dupla inglesa, que retornou com novo álbum sensacional

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Não sei já disse isso pra vocês, mas, se me fosse dada a chance de voltar para um período musical da minha existência, não pensaria duas vezes: “quero voltar para 1994/95 e acompanhar a geração noventista de artistas de Música Eletrônica. Gente com propostas muito distintas entre si, como The Chemical Brothers, Goldie, Orbital, The Orb e, acima de todos, Underworld. Essa galera conseguiu alçar a música sintética da época, inicialmente pertencente aos subterrâneos ingleses e americanos, a uma condição de protagonismo artístico que, em termos estéticos, suplanta o que há de mais conhecido nos anos 1990, a saber, Grunge e Britpop, movimentos com notoriedade mundial comprovada. A Eletrônica é colocada num terceiro lugar protocolar e sem brilho, mas esta é uma avaliação errada e imprecisa. Se escolhêssemos um artista como parâmetro disso, o então trio formado por Darren Emerson, Karl Hyde e Rick Smith é uma escolha consensual.

Aqui no Rio de Janeiro, havia uma coluna no jornal O Globo chamada Rio Fanzine, levada adiante por dois jornalistas legais e confiáveis: Tom Leão e Carlos Albuquerque. Eles tiveram a sorte de estar no lugar certo e na hora certa. Inicialmente identificada com o Rock Alternativo, a coluna começou a abrir espaço para notícias sobre estes artistas eletrônicos ingleses, identificando-os como protagonistas de uma espécie de “novo Rock”, comprometido com a novidade, a independência e a ruptura de padrões estabelecidos pela indústria musical/cultural. Na época, envolvido com o Rock, eu não dei a devida atenção ao que eles falavam. Não tinha nenhuma esperança em ver artistas de Música Eletrônica como pontas de lança do estilo, algo que, na minha visão estreita da época, não era possível. Ainda havia por aqui uma noção de que a operação de máquinas para gerar som parecia algo menor que tocar um instrumento, visão esta que, com o passar dos tempos, felizmente, deixei para trás. Destes artistas apontados como importantes necessários, Underworld vinha com pinta de campeão. E qual era o motivo pra isso?

Karl Hyde e Rick Smith, os dois fundadores do grupo, já militavam na seara dançante desde os anos 1980 sem muito sucesso. Gravaram dois discos que ninguém – nem eles – lembra e pareciam sem muita perspectiva quando os sons das festas inglesas – as famosas raves – começou a surgir mais alto. Eles perceberam que era preciso captar algo daquele novo momento, daquela nova música feita nas próprias festas, com a intervenção de DJ’s e performers de todo tipo e, de alguma forma, levar aquilo para o disco. Mais ainda, quase inventar uma nova corrente musical, algo que privilegiasse o clima, a viagem, a percepção não necessariamente sonora, algo que, perdoem o papo viajante, ampliasse a percepção. As muitas denominações surgidas ou ressignificadas neste momento mostram o quão amplo era o leque destes artistas. Se enquadrássemos Underworld num rótulo, ele seria Techno, House, Hip Hop Progressivo, uma fusão improvável, mas que se materializou de fato no terceiro álbum da banda, Dubnobasswithmyheadman, o primeiro com Emerson a bordo, que viu as prateleiras do mundo em 1993. Foi o trabalho que colocou Underworld no protagonismo desta onda de novos artistas.

Ainda levou três anos para que eles tivessem seu talento catapultado para a visibilidade mundial, a ponto de entrarem no radar da briosa Rio Fanzine e um evento foi catalisador disso: o longa Trainspotting. Com uma narrativa sobre jovens junkies vivendo em Edimburgo, a culturalmente rica, porém materialmente empobrecida cidade escocesa, o filme mostra uma geração aparentemente perdida entre drogas, falta de perspectiva e inadequação ao mundo neoliberal que o Ocidente abraçara poucos anos antes, a partir do fim da experiência socialista na Europa. A chave do sucesso do longa é o fato de que, mesmo submersa em questões sérias, esta juventude era capaz de gerar seu próprio caldo de cultura, personificado em grande parte pela música que emana destas festas e de referências do passado. É um filme que tem Lust For Life, canção da safra 1977 de Iggy Pop em sua primeira cena e Born Slippy, de Underworld, em sua última cena. Isto deve significar algo, certo?

Esta inserção na trilha sonora do longa coincidiu com o lançamento do quarto álbum, Second Toughest in the Infants, no início de 1996, que, pasmem, chegou ao Top 10 inglês. A grande novidade aqui é o movimento do grupo para fora desta lógica underground, com ambições que iam muito além de uma pista de dança, ainda que estivesse lotada. A mágica acontecia através das intervenções vocais e guitarrísticas de Karl Hyde, cobrindo a maçaroca tecladeira de Smith, tudo devidamente traduzido para a modernidade por Emerson. Não havia como dar errado e o álbum consolidou a presença de Underworld no protagonismo musical da década, sem qualquer exagero. Havia muito de Progressivo em suas músicas, geralmente indo muito além dos dez minutos de duração, abertas a momentos de repetição rítmica, mas capazes de comportar fraseados de teclados e efeitos que desafiavam a noção musical do ouvinte, caso de Juanita/Kiteless/To Dream of Love, Pearl’s Girl e Blueski, todas seguindo esta receita.

Após três outros anos de turnês, apresentações, remixagens de outros artistas e produção de sonorizações para comerciais de TV, os integrantes de Underworld se juntaram para um novo trabalho – e o preferido deste humilde escrivinhador: Beaucoup Fish, que seria lançado em abril de 1999. Aqui a paisagem noturna dos álbuns anteriores, essencialmente urbana, é substituída por uma atmosférica versão de música feita para dançar. Todas as faixas são leves, aéres, azuis e brancas, a exemplo da própria capa do álbum. Criações como Jumbo, Shudder/King Of Snake, Push Downstairs dão esta medida com precisão. Na verdade, o disco todo é uma grande suíte que vai nesta direção, mas sem abrir mão da prerrogativa dançante em nenhum momento. Em seguida, sensacional registro ao vivo Everything Everything, lançado em 2000, fecharia o ciclo de Darren Emerson no grupo. Ele deixaria Underworld para seguir com sua carreira de DJ.

Sintomaticamente, a trajetória de Underworld demonstra uma queda de qualidade a partir deste ponto. O álbum seguinte, A Hundred Days Off, lançado em 2002, mostra um esvaziamento criativo, como se a dupla restante procurasse um novo lugar para existir num cenário musical que mudara sensivelmente em pouco tempo. Se a liberdade da música digital, que já se insinuava fortemente, parecia mais adequada à proposta libertária da Música Eletrônica noventista desde o início da década, agora, no novo milênio, ela parecia sem direção. Este fato é comum a quase todos os artistas da geração de Underworld, sendo que muitos deles haviam ficado pelo caminho, num processo natural de permanência dos que têm proposta estética mais sólida.

As criações de Karl Hyde e Rick Smith rarearam. Assinaram trilhas sonoras para o cinema, coletâneas, álbuns com outros artistas e dois trabalhos autorais, Oblivion With Bells (2007) e Barking (2010), no qual, pela primeira vez, entregaram a produção de um álbum para vários artistas, que toparam colaborar com a dupla. O resultado, claro, carece de coesão e mostra que, infelizmente, Underworld parecia fadado a desaparecer em pouco tempo, algo que só foi comprovado pelo lançamento de um álbum solo de Karl Hyde (Edgeland, em 2013) e dois discos com ninguém menos que Brian Eno, que surgiram em 2014, a saber, Someday World e High Life. Felizmente, este temor desfez-se com o anúncio de um novo disco da dupla, o emocionante Barbara Barbara, We Face a Shining Future, o qual tive a chance de resenhar e que me parece uma retomada vigorosa do espírito inovador que norteava as criações do duo lá pelo fim da década de 1990, porém sem qualquer viés nostálgico ou revisionista. Parece, simplesmente, que reencontraram sua melhor forma de expressão pela música.

Pego emprestado o raciocínio que usei para me referir a esta última criação de Underworld quando a resenhei: num tempo em que a Música Eletrônica parece resumida no que chamam de EDM, é um bálsamo a retomada da carreira de artistas do quilate da dupla. Ela oferece uma alternativa para apreciação de uma música complexa, mas eficiente, que fala direto para vários sentidos do corpo e que não exibe o imediatismo picareta de muitos artistas que estão por aí. Se você está a fim de conhecer algo assim, aceite este convite e vá na fé.

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ARTISTA: Underworld
MARCADORES: Redescobertas

Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.