O Estranho Caso de Brazilian Octopus

Banda gravou único e raríssimo álbum, agora relançado

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Amantes de vinis raros, tremei: como mais um item da série Clássico em Vinil, da Polysom, está chegando ao mercado uma raridade da música nacional: o único álbum de Brazilian Octopus, lançado em 1969. O disco estava fora de catálogo, apesar de ter sido relançado em CD remasterizado há alguns anos, dentro de uma série comemorativa do selo Som Livre. Agora ele volta às prateleiras em exemplares de 180 gramas de alta fidelidade, preenchendo uma lacuna de muitos anos e atrapalhando a vida dos vendedores de raridas nos mercados paralelos de discos, nos quais o LP é cotado a preço de ouro.

Você, amado leitor/a/x, já ouviu falar deste grupo? Suponho que não. Ele é um dos mais interessantes casos de subversão da lógica do sistemão da indústria musical brasileira, numa época em que este próprio sistema não era tão opressor e bem posicionado como é hoje. Também era um tempo em que a própria mídia ainda não havia se estabelecido como força dominante na escolha das manifestações artísticas por um público. Ainda não havia a publicidade como é hoje, o neoliberalismo não obrigava que todas as obras de arte se destinassem apenas ao lucro e ao consumo, enfim, era um outro tempo, um outro mundo. Estamos falando do agridoce ano de 1968.

Digo agridoce porque, enquanto as manifestações artísticas atravessavam um período extremamente fértil, em especial a música popular, que produzia álbuns e canções que se tornariam clássicas, tal inspiração e fertilidade vinha de uma época em que a sociedade tentava avançar em termos de igualdade de direitos a partir de novas formas de pensamento. A palavra de ordem era inclusão, seja de negros, de mulheres, de latino-americanos, de pobres, de orientais e muito pouco se conseguiu. As canções foram uma espécie de frente de batalha, em que gritos contra o tal estabilishment foram dados, posteriormente silenciados. De qualquer maneira, era um ambiente efervescente e as condições para algo revolucionário surgir eram bastante férteis. E, bem, algo assim surgiu em São Paulo.

Através da ação de executivos da multinacional Rhodia, que foi pioneira na fabricação de várias fibras sintéticas para vestuário, surgiu a ideia de formar um supergrupo musical que se responsabilizasse pela sonorização de vários desfiles-espetáculo modernosos e vanguardistas que a empresa iria promover, com direito a exibição televisiva em horário nobre. Algo mais ou menos parecido com o que existe hoje, quando desfiles se tornaram eventos multimídia nos quais também tem moda. O italiano Livio Rangan incumbiu-se da tarefa e foram recrutados para a formação final do grupo Lanny Gordin (guitarra), Hermeto Pascoal (flauta), Cido Bianchi (piano), Douglas de Oliveira (bateria), João Carlos Pegoraro (vibrafone), Carlos Alberto de Alcântera Pereira (sax e flauta), Nilson da Matta (baixo) e Olmir Stocker (violão e guitarra), o Alemão. Formado pela ocasião, o grupo só existiu durante um ano e deixou apenas um álbum como registro de sua passagem pelo cenário musical.

O fã de música mais atento notará as presenças de Gordin, um dos arquitetos guitarrísticos da Tropicália, presente em literalmente todos os álbuns lançados no país naquele fim de década, por Caetano, Gil, Gal e Bethânia, além de outros vários artistas iniciantes. Além de Lanny, Hermeto Pascoal, o futuro bruxo dos instrumentos e das sonoridades estranhas, ainda iniciante. Na verdade, este álbum marca a estreia de Hermeto em disco, apesar de já colaborar com outras formações instrumentais até então. Além deles, Cido Bianchi, que havia sido pianista de Jongo Trio e Milton Banana Trio, o primeiro nome contatado por Lívio para a arregimentação dos outros músicos e para a própria concepção do projeto. A ideia é que tudo soasse extremamente moderno e inventivo. Pense: quando e onde uma multinacional financiaria um grupo musical para criar algo sem qualquer compromisso com as vendas ou o sucesso? A missão do grupo era criar um contraponto sonoro para o arrojo dos desfiles e dos espetáculos, que pretendiam associar a Rhodia com o futuro que já havia chegado.

Com músicos tão versáteis, não foi tarefa difícil. A missão da empresa ainda incluía a gravação de um álbum a partir dos encontros e ensaios dos oito integrantes. Com o nome da banda, o LP foi lançado pela Fermata em 1969, trazendo 12 temas instrumentais, com vários destaques. Na época, fazer releituras abrasileiradas, colocando abordagens de Samba-Jazz em canções clássicas era o alto estágio da modernidade. O tempo encarregou-se de nunca tornar tais obras datadas, conferindo ao álbum uma atemporalidade impressionantes. Neste âmbito temos a abertura rítmica com Gamboa, propulsionada por flauta e baixo e um ritmo de bateria surpreendentemente atual. Rhodosando, de Hermeto, chega como um destes números latinizantes, cheio de bossa e potencial dançante. Canção Latina, composição de Olmir Stocker, é pura beleza, parecendo trilha sonora de uma churrascaria espacial, logo receberia letra de Vitor Martins, futuro parceiro de Ivan Lins. Pavane, clássico instrumental do compositor francês Gabriel Fauré, surge como tema cinematográfico, com arranjo de xilofones e extravagâncias tecladeiras mil.

Falando em cinema, As Borboletas, tema de autoria de outros compositores franceses, no caso, André Popp e Pierre Cour, surge com graça e leveza, abrindo passagem para a brasileiríssima Momentno B/8, uma rapidíssima peça de Samba e Jazz com teclados turbinados e aura percussiva endiabrada. Um resquício de Bossa Nova Tardia chega com a versão luminosa de Summer Hill, de Carlos Lyra e Vinícius de Moraes. No mesmo caminho vai o balanço de Gosto De Ser Como Sou, original de Ciro Pereira e Mario Albanese, este último produtor do álbum. Fecham o álbum mais latinidade em Chavê, outra composição inédita de Hermeto Pascoal, as arejadas Canção de Fim de Tarde e O Pássaro (de Lanny Gordin) e uma arrasadora versão de Casa Forte, de Edu Lobo.

Em precisos 29 minutos e 28 segundos, as 12 canções de Brazilian Octopus, o disco, passeiam por estilos derivados do Easy Listening, que foram revalorizados a partir dos anos 1990, mas indo muito além dos rótulos, chegando a criar uma sonoridade própria, atemporal. Se alguém for ouvi-lo sem qualquer informação sobre datas, poderá pensar que tudo foi feito ontem ou há 50 anos. Obra de arte é isso, amigos.

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Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.