Charles Gavin: “Artistas vão embora, as bandas se desfazem, mas a música fica”

Músico e pesquisador comenta o projeto Primavera nos Dentes, que regravou Secos & Molhados

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Fotos: Kaio Caiazzo

Quando Charles Gavin falou ao Monkeybuzz sobre o projeto Primavera nos Dentes, o site já havia preparado terreno para o projeto – que regravou em modo 2017 o repertório da icônica Secos & Molhados – com dois artigos anteriores, um sobre a banda de Ney Matogrosso e outro sobre o próprio disco, lançado no último 18 de agosto. Por isso, nossa conversa por telefone teve o papel de ouvir em suas palavras sobre o processo de formação do novo grupo, assim como – e principalmente – o de reapresentar essas músicas ao público de hoje, em um ponto de vista pessoal do baterista e pesquisador sobre o tempo e a relevância dessa obra no contexto atual.

Quem ouviu o álbum Primavera nos Dentes bem sabe que suas faixas trazem aquelas composições que já conhecemos desde sempre em uma estética bastante contemporânea (aquela beleza de Pós-MPB) que adorna O Patrão Nosso de Cada Dia, Rosa de Hiroshima e outras canções enraizadas no repertório popular de quem nasceu e cresceu por aqui. Se a decisão de regravá-las veio “com toda a certeza”, nas palavras de Charles, o modo com que isso aconteceu foi bastante complexo. “Pegar um repertório desses como matéria prima não é algo fácil de se fazer”, explica ele, “a gente podia errar feio a mão”.

A escolha de gravá-lo veio como resultado de um processo muito anterior ao lançamento, que tem a ver com a época em que o músico desligou-se do trabalho com a banda Titãs. “Eu não estava bem em 2009, estava muito desgastado da estrada, a gente já vinha emendando discos com turnês e shows, e eu não estava bem de cabeça, confesso a você, eu precisava dar um tempo”, conta ele, “foi difícil me afastar, fiquei três anos sem tocar bateria. Foram três anos meio sabáticos quando fui me dedicar a outras coisas” – dentre elas, seu trabalho como pesquisador da diversidade musical produzida no país. “Eu pensava “quando é que eu vou conseguir voltar para os palcos?’”, relembra, “o objetivo [com um novo projeto] era poder voltar aos palcos”.

Regravar a obra de João Ricardo, Ney Matogrosso e Gérson Conrad veio como resposta ao questionamento “Qual música é relevante para mim e para minha geração, que está no meu DNA?”, ele comenta, o que foi fundamental na hora de iniciar um novo projeto. “Esses discos são a música clássica popular brasileira”, segundo ele, “ao lado de Os Mutantes, Novos Baianos, Gil, Raul Seixas, Rita Lee, Caetano, enfim. São discos atemporais, eles continuam relevantes após duzentos anos. E aí foi muito óbvio o caminho que se apresentou: Vamos recriar esse repertório icônico e emblemático”.

“Se é relevante para mim, que sou de 1960, e é relevante pra Duda, que vai fazer 24 anos daqui alguns dias, é relevante para muita gente. Os artistas vão embora, as bandas se desfazem, mas a música fica. A poesia é tão atual e os arranjos… eles são clássicos. Se alguém coloca essa música no rádio, automaticamente todo mundo fala ‘caramba, que coisa incrível, que bom ouvir essa música’. E a pessoa está familiarizada com a poesia. Ela pode não conhecer o nosso arranjo, mas vai saber cantar a letra. Isso ajuda uma relação de cumplicidade nos shows”.

Na hora de gravar, a palavra de ordem, conta o músico, era ter prazer no desafio de encontrar seus novos caminhos, priorizando a originalidade – “para cada música, a gente teve a preocupação de não se parecer com nada”. Com isso, referências a ritmos tipicamente brasileiros, como o Carimbó e o Coco, encontraram inspirações em vertentes do Rock (sobretudo Indie e Punk) e até mesmo Fiona Apple, o que resultou em uma sonoridade que reforça o caráter contemporâneo que as letras possuem.

Para Charles, nossa época é marcada “pela falta de perspectiva”. “Nos anos 1970, a perspectiva era ruim. Uma ditadura militar, uma sociedade conservadora e repressora, e aí vieram Os Mutantes, Novos Baianos e Secos & Molhados para quebrar ‘aquela caretice’, como disse Rita Lee. No nosso caso, vivemos uma ausência total de perspectiva. E esse resgate tem a ver com esse momento político, em que todas as estruturas desabara. Não tem fundo esse buraco, estamos sendo completamente ignorados por Brasília. Por muito menos, a gente estava na rua um ano e meio atrás, como é que a gente não está na rua agora com tudo o que está acontecendo?”.

“Eu penso bastante nessa visibilidade que eu tenho”, comenta ele, “em uma hora como essa em que a gente se lança sobre uma obra como [a da banda], isso provoca coisas. A gente transforma um sentimento negativo, a falta de perspectiva, em um prazer de tocar e de ouvir música”. Para além de instigar o pensamento através da poesia e da música, Primavera nos Dentes cumpre bem seu propósito de reapresentar um capítulo da música brasileira a uma nova geração. “Recebi uma mensagem no Facebook esses dias de um senhor que dizia ‘muito obrigado por apresentar Secos & Molhados aos meus filhos’. É uma responsabilidade que não se pode ignorar”, conclui.

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Autor:

Comunicador, arteiro, crítico e cafeínado.