Ryuichi Sakamoto: Um Gênio Gentil

Músico japonês permanece na vanguarda em vários terrenos

Loading

Sem alarde, sutil como parece ser, com pés pisando macio e silenciosamente, Ruyichi Sakamoto lançou um álbum. Intitulado Async Remodels, o disco passeia por versões e releituras de faixas presentes no trabalho imediatamente anterior, async, de 2017. Talvez por demanda pessoal, talvez por outra razão, o veterano compositor japonês preenche uma lacuna de natural curiosidade em sua música, compensando um período de hiato quando passou por momentos complicados em sua vida pessoal. Não há como definir a obra de Ryuichi Sakamoto sem soar superlativo. O homem é um patrimônio vivo da música erudita contemporânea e você precisa conhecê-lo melhor, ouvir suas criações de diferentes fases e adentrar esse mundo chuvoso, misterioso e terrivelmente moderno que ele oferece a cada ouvinte que se depara com suas criações.

Sakamoto é muito mais que um artista Pop. Aliás, provavelmente ele não é, ainda que suas incursões pelo terreno sejam bastante bem sucedidas. Seu habitat natural é, no entanto, o âmbito da música Eletrônica/Ambiente, as trilhas sonoras cinematográficas e discos inclassificáveis. Quando deseja sair desse terreno, já bastante amplo, ele exibe influências nítidas de Tom Jobim e de um mestre comum a ambos: Claude Debussy. É possível dizer que a base de toda a música de Sakamoto parte de onde as criações do compositor francês pararam, uma visão noturna e oculta da vida e dos elementos da natureza. A sutileza é sua grande aliada, algo totalmente necessário para quem se aventura a criar texturas delicadas e singelas. async e sua versão “remodelada” são álbuns que exploram essa faceta contemporânea, Eletrônica e, sobretudo, ambiente, contendo música elemental, ao mesmo tempo urbana e detalhista. Só que, como dissemos, as capacidades e habilidades de Sakamoto estão muito além disso.

Nascido em 1952, ele iniciou os estudos musicais na universidade em Tóquio. Após aprender muito sobre a natureza humana e histórica da arte musical, ele começou a compor e gravar de forma amadora, influenciado decisivamente pelas impressionantes criações que Brian Eno lançava em disco. Outra fonte de inspiração foi o grupo alemão Kraftwerk, que materializou muito do que se imaginava sobre a união de música popular e Eletrônica, apenas na teoria. Quando os alemães soltaram álbuns como Trans Europe Express (1977), Sakamoto já estava envolvido com uma versão oriental e pouco conhecida dos bits e bites dançantes que começavam a se insinuar. Surgia a Yellow Magic Orchestra. Formada por ele e colegas de faculdade, o grupo surgiu como um Kraftwerk oriental, algo totalmente real e justo. O grupo rapidamente transcendeu as fronteiras japonesas e adentrou o circuito moderníssimo da música Eletrônica, inspirando e sendo inspirado, não só pelos alemães, mas pela nascente onda de bandas da New Wave e artistas do novíssimo Rap, dois estilos musicais decisivamente possíveis por conta de Kraftwerk.

Com álbuns lançados entre 1978 e 1983, sua YMO não era suficiente para Ryuichi. Ele tinha uma carreira solo paralela, que mostrou-se importantíssima já em 1980, quando seu segundo álbum, B-2 Unit surgiu nas paradas através do single Riot In Lagos. O uso de beats eletrônicos dançantes é tão inovador nessa faixa que Sakamoto se viu alçado à condição de influenciador da própria fusão da música eletrônica para dançar, papel que ele também assumiu em relação ao próprio Hip Hop. A canção é considerada um marco decisivo na formação deste estilo musical, numa época bem remota. Como você já deve notar, o sujeito não se contentava apenas com uma carreira convencional e logo apareceria nas telas de cinema no longa Merry Christmas Mr. Lawrence, filme do diretor Nagisa Oshima, no qual ele atuava ao lado de David Bowie. A presença de Sakamoto o levou naturalmente para assinar a trilha sonora original, que tornou-se um inesperado sucesso mundial, especialmente pela faixa-título e por Forbidden Colours, que traz a melodia da canção que dá nome ao filme com vocais de David Sylvian.

Sakamoto ainda era uma figura relativamente desconhecida do grande público ocidental quando a trilha que compusera para O Último Imperador, de Bernardo Bertolucci, em parceria com David Byrne, foi indicada e posteriormente premiada com o Oscar em 1988. O trabalho dele, já tão importante, ganhou impulso como compositor para o cinema, repetindo a dose com outro filme de Bertolucci, O Céu Que Nos Protege, lançado dois anos depois. O compositor japonês nunca deixou de lado sua paixão pela música de cinema, assinando várias trilhas, sempre indicado ou premiado, caso das canções para longas como Babel ou O Retorno. As influências clássicas e eruditas se manifestam muito mais neste tipo de trabalho, mas no caso das presenças inspiradoras de gente como Tom Jobim, por exemplo, Sakamoto é obrigado a fazer projetos paralelos. Este é o caso de Morelenbaum + 2, do qual participou no início do século 21, junto do casal Jaques e Paula Morelembaum, gravando o álbum Casa.

Registrado integralmente na casa que Tom Jobim morou em seus últimos anos, no bairro carioca do Jardim Botânico, Casa é outra obra que prima pela delicadeza total. As luzes e detalhes que vêm do piano de Sakamoto, quase ofuscam o casal titular, mostrando o quanto de familiaridade existe entre suas composições e as de Jobim, caso da própria Merry Christmas Mr.Lawrence, cujo início lembra demais Pelas Luz Dos Olhos Teus e Estrada Do Sol, parcerias de Jobim com Vinícius de Moraes e Dolores Duran, respectivamente. Casa foi tão bem sucedido que levou o trio a se apresentar em várias cidades, tendo dois discos ao vivo registrados em Nova York, especialmente com o repertório original de versões e interpretações dos clássicos e algumas canções obscuras de Jobim, caso de As Praias Desertas, cujo original, cantado por Elizeth Cardoso, está em Canção do Amor Demais, o disco marco-zero da Bossa Nova, de 1957.

Sakamoto se viu às voltas com duas situações terríveis nos últimos anos. Em 2011 ele sobreviveu a um maremoto que atingiu o Japão e, dois anos depois, foi diagnosticado com câncer na laringe, fato que o obrigou a interromper todos seus projetos para se tratar. Felizmente, três anos depois, o músico já estava de volta aos estúdios para compor e gravar a trilha de O Retorno, filme de Alexandro Iñarrítu, estrelado por Leonardo Di Caprio e se preparar para registrar o primeiro disco de material original em sua carreira oficial como artista: async. Sakamoto, que também é ativista anti-nuclear, declarou em entrevista que utilizou um piano nas gravações do álbum que foi totalmente submerso durante o maremoto de 2011. Ele disse que gostaria de aproveitar a “desafinação natural” que o instrumento exibia após tamanha provação.

Ryuichi Sakamoto está num nível de relevância para a música dos nossos tempos equivalente ao de gente como Brian Eno. Suas criações passeiam por paisagens sonoras típicas da atualidade, de um jeito atemporal, exibindo uma marca registrada de respeito, genialidade e, como já dissemos, delicadeza. Vá até a página do artista no Spotify e se depare com vários, inúmeros álbuns solo, trilhas e projetos alternativos/colaborativos, prontos, estalando de novos para seus ouvidos. Música pode ser sempre mais e gente como Sakamoto está aí pra confirmar e viabilizar isso.

Loading

MARCADORES: Redescobertas

Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.