Sete anos da festa SOUL.SET

Thiago Guiselini avalia trajetória do projeto e conta mais sobre a loja de vinis lisboeta Amor Records/

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Fotos: Divulgação

Neste fim de semana, a festa SOUL.SET comemora o sétimo aniversário com bons motivos para celebrar. Criada pelo DJ Thiago Guiselini, que está na ativa há 17 anos, a festa dedicada à House e Disco conseguiu formar um público cativo e interessado musicalmente. Pela cabine de som de clima solar, já passaram artistas como Ron Trent, Atjazz, Metro Area, Mark Farina e DJ Spinna.

Pesquisador musical de gosto afiado, Guiselini ainda mantém sociedade na loja Amor Records, referência de vinis brasileiros em Lisboa, cidade que vive hoje uma efervescência cultural, a cada dia se transformando em pólo atrativo de artistas independentes na Europa. Guiselini trocou ideia com o Monkeybuzz, quando fez algumas reflexões sobre a evolução musical da festa e ainda contou mais sobre a experiência de conhecer o funcionamento da cena lisboeta.

Monkeybuzz: Qual é sua primeira memória de ouvir uma música House e ter se sentido fisgado pelo estilo musical?

Thiago Guiselini: Não me lembro bem, pois ainda era criança, os beats sempre me chamaram atenção. Naquela época, ficava ligado quando tocava algo assim na rádio, ou fuçando nos vinis encostados em casa. O Rap também era algo me deixava vidrado na infância. Eu tinha uns 12 anos e dormia ouvindo Racionais MCs praticamente toda noite. Agora, o que me marcou mesmo foi a primeira vez que estive em um club, eu tinha dez anos e fui acompanhar meu professor em uma apresentação. Assim que pisei na pista, olhei aquele ambiente, o som, as luzes, na hora quis saber de onde vinha aquele som. Enquanto não descobri a cabine, não sosseguei. Fiquei ali parado, vidrado, enquanto todos dançavam a tal da House.

Mb: Como você avalia a percepção do público em relação às pesquisas musicais voltadas a House e Disco apresentadas nos sets da SOUL.SET? Você sente que o público aumentou, e consequentemente, está se aprofundando mais sobre essas sonoridades nesses sete anos de festa? Qual é o seu ponto de vista sobre esse feedback?

Thiago Guiselini: Tenho muita sorte com a SOUL.SET, desde o início é um público muito bem informado, aberto a escutar música, que já vinha de lances bem interessantes que aconteciam na cidade. Começamos em um bom momento, já existia uma base bacana por trás, mas faltavam festas, nunca tive um pedido musical fora do contexto – digo, pedido pelas mídias sociais -, pois ao vivo a galera sempre respeitou os artistas que ali estavam e nunca pediram músicas. Logo nas doze primeiras edições, nós gravávamos duas mixtape dos DJs residentes em CD, sempre com uma capa impressa legal com a arte do artista que pintaria na edição em questão e entregávamos para os 100 primeiros dançarinos ao chegarem na festa. Acho que isso colaborou um pouco. Não podemos reclamar do público de São Paulo, não posso dizer que esse interesse veio através da SOUL.SET, de sete anos para cá a cena no geral teve um amadurecimento muito grande e nós acompanhamos isso ano a ano. A galera está interessada mesmo.

Nossos line ups sempre foram muito bem pensados para a proposta musical que queríamos transmitir e o público acabou identificando a cara musical da SOUL.SET. Percebemos uma fidelização muito especial, acaba que isso gera uma forte corrente. Tocamos House Music e tudo o que a influencia, Soul, Jazz, Funk, Disco, R&B, Afro, Latin uma ou outra de Techno mais e por aí vai. Isso é bem leg al,pois essa estética sonora atrai todo mundo interessado em música. Trouxemos DJs estrangeiros que eram conhecidos pela cena House internacional, mas no Brasil muitos desconheciam. Mas nem por isso o público foi pequeno ou não correspondeu. Meu feedback é o melhor possível, não é à toa que existe tantos projetos conseguindo se manter por tanto tempo hoje em dia. Isso mostra o quanto o público interessado em música Eletrônica cresceu. Nós temos que agradecer o interesse e esse amadurecimento musical que ganhamos de São Paulo.

Mb: Como está sendo para você acompanhar de perto a cena musical Eletrônica de São Paulo e de Lisboa, com troca e proximidade? Qual é a conexão que você avalia existir musicalmente e comportamental entre as duas cidades? E as diferenças?

Thiago Guiselini: É bastante especial participar de um momento como esse em São Paulo. Sou DJ há 17 anos. Quando comecei, em 2001, a cena estava bem forte por aqui, existiam grandes festas, festivais e vários clubes com uma programação bastante intensa. Iniciei minha vida noturna em 1999, então vivi bem tudo isso de SP e posso falar com mais intensidade. Vi a cena crescer, perder força e explodir novamente. Lisboa, ainda sou bem novato, fui apenas quatro vezes à cidade, 2010, 2013 e duas em 2017. Fiz três gigs até então e, nesse último ano, estava bem focado na inauguração da loja. Acho que vou me aprofundar de fato neste ano, pois mudo minha base para lá em abril. É muito difícil comparar a cena de duas cidades tão diferentes, a população de São Paulo é a mesma que Portugal todo, logo, a proporção das cidades vai sempre ser diferente. Mas Lisboa vem ganhando bastante espaço, senti isso desses anos para cá, abriram novos clubes na cidade, muitos projetos novos, lojas de discos, festivais, a cena cresceu e vem crescendo muito rápido. Quando estive lá pela primeira vez, só existia um club legal e com programação interessante, hoje existem pelo menos três sempre rolando algo bacana. Em 2010 e 2013, não existiam afterhours na cidade, hoje existe uma festa bem conhecida.

Já passaram vários DJs europeus pela loja que estavam tocando pela cidade, muitos DJs querendo mudar sua base para Lisboa, o movimento artístico em geral vem criando mais força. O que vimos acontecer por aqui há alguns anos está acontecendo lá agora, esse movimento é bem parecido. Existe uma conexão muito grande entre as duas cidades na parte musical, nossa música é muito admirada pelos portugueses, acredito que muitos deles até conhecem mais sobre nossa música do que nós mesmos. Em relação ao comportamento, é um pouco mais complexo, prefiro respirar mais a cidade para poder pontuar. Eles gostam de sair para uma festa e club bem tarde, isso é parecido com os paulistanos. São bem mais contidos do que nós no sentido de montação, performance e talvez na piração, mas é claro que não posso generalizar. Por ser uma cidade menor, a entrega das pessoas acaba sendo mais intensa. Eles não esperam grandes lotações e, às vezes, uma pista de 50 pessoas tem um retorno absurdo, pois é o que eles estão acostumados.

Mb: Como é organizar uma festa num formato independente em Lisboa? É possível fazer rolês nos moldes parecidos com o de São Paulo em Portugal? Por exemplo, rola de botar som na rua numa praça ou ocupar um galpão abandonado? Você conseguiu se aventurar por esses caminhos lá ou ficou focado na loja?

Thiago Guiselini: Fiquei mais focado na loja nesse primeiro momento, mas sempre de olho no que poderia ser feito e estava acontecendo. Hoje em dia, é possível sim, graças a ocupação de prédios e locais esquecidos pela cidade. Toquei em uma ocupação no bairro de Marvila/Beato, fui a um festival dentro de um complexo de fábricas antigas, ouvi DJs em frente a Torre de Belém e Praça do Comércio. Fui a uma rádio e um coletivo artístico em um prédio ocupado. Rola colocar som em locais assim, na beira do rio, em praças ou até prédios públicos, mas lá eles dão as licenças para isso, nada é ilegal.

Mb: Quais distribuidoras vocês têm trabalhado constantemente, ou em parceria, na Amor Records?

Thiago Guiselini: Além dos novos, também trabalhamos com discos de segunda mão, compramos muitas coleções, ficamos de olho em tudo. É daí que surgem as pérolas, vem disco de tudo que é lado, mas trabalhamos com várias. Algumas delas são Yoyaku, Chez Emile, Subwax, Etienne, Rush Hour, Juno, Superfly, Mr. Bongo, Groovie e por aí vai.

Mb: Lisboa está efervescente na cena local. O que você sentiu de mais motivador nesse movimento por lá?

Thiago Guiselini: Esse lance de coisa nova do ar, todo mundo disposto e querendo fazer acontecer, o acolhimento dos portugueses receptivo e caloroso, o gostinho de construir um capítulo novo, muitos europeus vizinhos mudando para lá e com essa mesma vontade de construir algo. Desde que abrimos a loja, é impressionante o número de pessoas de fora de Portugal que transitam na cidade, todos com projetos em mente, interessados, questionando sobre a cidade e sempre com excitação em falar de lá. Muita gente procurando parcerias futuras, essa energia acho que é o mais importante para a cidade.

Mb: Gostaríamos de saber quais estilos musicais locais de raiz, tradicionais por aqueles lados muito diversificados culturalmente, que tem forte influência negra de ritmos como o kuduro, são presença constante em discos da loja? Quais artistas que se encaixam nessa categoria você nos indicaria, aqui do Brasil, para conhecermos e sacarmos mais sobre a música dos ritmos regionais que rolam em Portugal?

Thiago Guiselini: O foco da loja é Música Eletrônica, Brasileira, Afro, Disco, Funk, Soul, Jazz. Além disso, trabalhamos com World Music em geral, garimpadas pelo mundo afora. A busca por música brasileira pelos portugueses e europeus em geral é bem grande e, justamente por sermos brasileiros, focamos nisso nesse primeiro momento. Todo nosso esforço nesse começo é em descobrir preciosidades, coisas esquecidas, não lançadas, para atrair colecionadores em geral. Nossa ideia não é apresentar o que eles possuem acesso. É claro que em Lisboa é possível encontrar muitos discos locais de raiz, nas várias feiras de rua, sebos e lojas locais, Feira da Ladra é um grande exemplo. E sim, a influência da música negra é muito forte em Lisboa e mesmo assim ainda fico na dúvida se supera o consumo da música brasileira. A busca por coisas africanas que foram prensadas por lá com poucas unidades promocionais dos anos 70,80 também nos atrai bastante. Também existe uma cena Hip Hop independente com certa relevância na cidade. Indico um disco raro que acabamos de adquirir do Carlos Maria Trindade/Nuno Canavarro – Mr. Wollogallu, de 1991, um disco experimental e ambient bastante exótico.

Mb: De que jeito você imagina que os discos de vinil possam nutrir sentimentos analógicos em mentes digitais?

Thiago Guiselini: A música não deixa de ser um ritual, pegar um disco, tirar da capa, colocar no toca-discos e acertar a agulha na faixa não deixa de ser um ritual. O manuseio de um disco é muito mais prazeroso do que um simples play no YouTube, Spotify ou um mp3 qualquer. Nessa vida digital, tudo acaba meio automático, sem uma percepção intensa. Com o disco, você tem contato direto com a música, sem contar a qualidade do áudio, que é muito superior. A experiência muda, é muita mais harmonioso, sem compressão da gravação original, o som não soa metalizado como uma audição digital. Por incrível que pareça, muitas pessoas sentem falta desse contato, até mesmo quem nunca ouviu um disco, quando experimentam se surpreendem. Não é à toa que o mercado de venda de toca-discos aumentou de uns anos para cá.

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