Crooners e Jovens Idealistas

Do novo Alex Turner a Nick Cave, cantores do estilo mostram suas forças criativas

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Fotos: Alba Vidal

Um aviso: este artigo surgiu por conta da controvérsia saudável gerada pela chegada do novo álbum dos ingleses Arctic Monkeys, Tranquility Base Hotel & Casino. Para não-fãs da banda, o disco soou como uma bem vinda lufada de ar criativo e imerso em referências douradas, não só do Rock, como do Pop mundial. Talvez um dos momentos mais brilhantes da fantasia cotidiana do século 20, o olhar otimista para o futuro, no qual, pessoas das primeiras décadas daquela centúria, imaginaram um mundo de veículos voadores, prosperidade, cooperação e tecnologia contaminando a vida cotidiana. Claro, houve música e outros reflexos artísticos atestando esta visão, chamada por muitos como “retrofuturismo”, mas que eu prefiro nomear de Futuro do Pretérito, aquele que poderia ter acontecido, mas ficou em alguma curva do caminho percorrido pela Humanidade. Não se trata de nostalgia, ele simplesmente ficou restrito a um acervo de ideias, disponível no shopping center de referências digital que é a Internet. Com a postura de Alex Turner, o macaco-chefe do grupo de Sheffield, que, mesmo não sendo inédita (pelo menos em seu projeto paralelo, The Last Shadow Puppets), dá as cartas pela primeira vez em sua “banda titular”. E o resultado é ótimo.

Uma das estéticas que Turner abraça no álbum, além do Futuro do Pretérito (manifestada, entre outras coisas, na ideia de um Hotel-Cassino na Lua) é a de cantar de uma forma intensa e vulnerável ao mesmo tempo. Muita gente pode – e deve – ter identificado referências a ícones como David Bowie e Scott Walker, que fizeram a transcrição de uma tradição antiga do Pop pré-Rock para os novos tempos dos anos 1960/70. A ideia de alguém cantando em tom baixíssimo, sussurrado, emocional, à frente de uma banda capaz de reproduzir quase qualquer ritmo, num buraco enfumaçado qualquer. O cantor tem vestes formais – terno, gravata, colete, talvez um cravo na lapela – e domina um repertório de standards do Jazz e do grande cancioneiro americano e não hesita em se valer destes clássicos para entreter uma audiência que oscila entre a dispersão e a bebedeira. A estes sujeitos, versáteis e intensos, a história chamou de crooners. É um termo que poderia ser traduzido como “murmuradores”, por conta da maneira de cantar, só tornada possível com o avanço da tecnologia dos microfones, que tornaram-se capazes de captar as emissões em tom baixo, que estes sujeitos adotavam como estilo para o canto. Com o tempo, o termo foi incorporando outras atribuições, como “band leader” ou “cantor versátil”, mas o estilo soturno, formal, levemente decadente ficou.

Restringir o espectro musical de Tranquility Base a um exercício de “croonerismo” tardio é reduzir a compreensão de um trabalho bem legal. Este detalhe está lá, porém surge embebido no oceano de referências ao qual já nos referimos há pouco. Também não é nada nova esta utilização de estéticas decadentes, próprias dos crooners, em discos de Pop/Rock. Num primeiro momento, este posto cabia a artistas como Frank Sinatra, Dean Martin e Louis Armstrong, entre outros, mas passou a servir de denominação para gente como Roy Orbison, Bryan Ferry, Nick Cave, Pulp, Richard Hawley, Divine Comedy, Tindersticks, Lambchop, entre tantos outros, molharam os tornozelos nesta água, quase sempre com resultados interessantes e oxigenantes. O novo de Alex Turner, no entanto, vai bem além, a começar pela total falta de cerimônia em oferecer algo inesperado para os ouvintes. Bandas que fazem isso em pleno 2018 merecem total respeito, justamente pela capacidade de desejar a reinvenção a cada momento e ter que lidar com a dificuldade de não permitir que esta vontade coloque em dúvida a autenticidade/integridade da banda. Ainda que o álbum seja 100% Arctic Monkeys, o desejo de fazer algo novo no cânon do grupo é latente.

Claro, hoje em dia, os riscos são poucos. Um artista de Rock em 2018 tem bem pouco para descobrir em termos de diferenças. Quase sempre estas descobertas soarão como diluição/adulteração aos ouvidos de críticos e engessados, mas podem, sim, afastar os fãs, que estariam dispostos a formas menos complexas de canções, uma vez que elas, cada vez mais se tornam acessórios para outras instâncias do cotidiano. Pense: quem vai perder 40 minutos (ou mais, dependendo da vontade do freguês) para destrinchar as intenções de Turner em seu novo álbum. Quem vai entender que a vontade do cara agora, neste momento, é compor e gravar canções ao piano, com acompanhamento anti-rock, com ambiências soturnas e existenciais. E quanta gente entendeu sem “dar um Google”, que o título do disco fazia alusão ao local de pouso da nave americana Apolo 11 na Lua, em junho de 1969? Pois é, pouca gente. É uma pena porque Turner deve ter passado algum tempo pensando no conceito e ponderando o tanto de valor que teria em colocá-lo em forma de música.

Nunca vai ser demais uma obra musical complexa. O tanto de estéticas novas/velhas que juntaram-se ao trabalho de Arctic Monkeys tornou a audição do álbum extremamente agradável. O “croonerismo” que toma conta das vocalizações, a leve decadência que ele sugere, a imagem de um casino na Lua, com gente indo e vindo num futuro que nunca aconteceu, em meio a luzes piscando, visíveis do espaço à medida que se aproxima do satélite, pense bem, que artista oferece um desjejum artístico com tanta sustância hoje em dia? Pois é, poucos. Seria sensacional se os shows de divulgação do novo álbum levassem o Arctic Monkeys a buracos enfumaçados e decadentes e eles incorporassem visualmente a estética crooner de um passado que olhava para o futuro com mais otimismo do que para seu presente. Que fossem uma banda de fim de noite, cascuda, com recursos, ciente de seu papel na roleta estética da música popular.

Não se engane com um detalhe: esses fantasmas de preto que lideram tais bandas, ofuscados, semiembriagados, decadentes, sem eira nem beira, não estão derrotados. Pelo contrário. Eles conseguiram – de algum modo – reverter a danação que a vida lhes impôs em força criativa e estão prestes a dar o troco. Como diz o verso que Turner canta na faixa de abertura de Tranquility Base Hotel & Casino, Star Treatment: “I just wanted to be one of those ghosts you thought that You could forget and then I haunt you via the rear view mirror”. “Eu queria ser um desses fantasmas que você pensou que poderia esquecer e então eu te assombraria pelo espelho retrovisor”. Talvez o Pop precise de crooners e jovens idealistas.

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Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.