Fela Kuti, o eterno embaixador do Afrobeat

Aprenda e conheça um pouco mais sobre o fundador do Afrobeat e uma das figuras mais importantes da história da música e da Africa

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Uma saudação respeitosa deveria acompanhar qualquer referência à Fela Kuti. Não só pela sua importância musical, pioneirismo no Afrobeat mas também por tudo o que este músico representou para o seu país, a Nigéria e o continente Africano como um todo. No entanto, elementos de uma história rica e interessante, se tornam ainda mais surpreendentes quando nos deparamos com uma viagem musical que poucos artistas conseguiram desempenhar, um som tântrico, sensual e extremamente hipnótico.

A música de Fela, talvez seja pouco conhecida fora de seu continente, a Africa, mas certamente tem muito a ver com a música regional brasileira e alguns estilos particulares daqui, como o Manguebeat, ritmo bastante influenciado pelo Afrobeat. Mas o que é esta forma de expressão musical que une elementos deste continente à batidas? Uma mistura de Jazz, música psicodélica, Funk e muitos ritmos e rudimentos tipicamente africanos. No entanto, não é tão simples como parece. Faixas se iniciam com partes instrumentais em que um groove eterno se propaga ao longo de toda a sua duração, o que não é pouco dado que a maioria das músicas de Kuti duram 20 minutos.

Guitarras são colocadas como pequenas vibrações sonoras, e o que realmente importa aqui são as transições entre os instrumentos, sempre sendo feitas com solos de orgãos, bateria e saxofones (instrumento de Fela). A sensação ao escutar o Afrobeat é de um bem-estar constante, em que a música que a princípio é um acompanhamento de fundo se torna parte motivadora de uma constante dança interna. É impossível não se tornar um elemento participante deste estilo de música, quando a escutamos.

Isto ocorre pois Fela, vindo de uma família classe média na Nigéria, ao ser mandado para estudar medicina em Londres, decidiu se voltar à música. E o que isso tem a ver com o Afrobeat? Tudo. Primeiro que a característica mais importante do estilo é a improvisação e o sentimento puro de cada nota e ritmo. E quer mais que uma decisão antâgonica na sua vida para que seu modo de percepção em relação a tudo, mude? Indo de Gana até Los Angeles, formando grupos musicais como Koola Loobitos, Africa 70 e posteriormente o Egypt 80, Fela soube muito bem tornar o improviso uma linguagem universal em sua vida.

Mas sem soar tão preciso em tanto acaso, o determinismo serviu para que todos os elementos da vida de Kuti fizessem sentido. Passando de uma origem em um continente marcado pelas separações territoriais, brigas tribais e sobretudo a intervenção colonialista do Ocidente, o saxofonista ainda nasceria em um dos epicentros mais conturbados neste continente, a Nigéria. Contra governos militares, ele criou uma república independente de seu país, a Kalakuta Republic. Mais do que uma demonstração de que não pertencia aquele regime, era também o local de sua criatividade musical, em que unia a músicos como Tony Allen, baterista que nas próprias palavras Fela é tão imporante para o Afrobeat que “ sem ele, o ritmo não existiria”. Era onde ele podia viver como um presidente, o Black President como viria a ser conhecido posteriormente. Dentro de sua república, diversas mulheres, esposas e histórias que posteriomente seriam determinantes para o seu trágico falecimento.

Agora você escuta o Afrobeat, e depois percebe que o que Fela canta lhe parece compreensível mas ao mesmo tempo não é. Os cantos, versos, parecem inglês mas não são, enquanto os ritmos africanos e bastante tropicais lhe parecem tão acessíveis e compreensíveis no território brasileiro. Seu dialeto é o “inglês Pidgin”. O que é pidgin? É o nome dado a qualquer língua criada de forma espontânea, devido as necessidades de comunicação mas que não tem preocupações gramaticais somente de entendimento entre duas partes. Ao escolher cantar e se expressar em tal dialeto, sua música se tornou compreensível em todos os cantos da Africa, um continente que é marcado pela falta de entendimento em países com tribos e povos que historicamente sempre foram rivais. Logo o seu estilo de música se torna algo muito mais importante que o próprio som vindo de sua voz e saxofone.

Ano passado, por exemplo, quando seu filho Seun Kuti e a antiga banda de Fela, Egypt 80 tocaram na virada cultural em São Paulo era possível ver diversos imigrantes ou estrangeiros ansiosos pelo show. Eram em sua maioria pessoas mais velhas que se viram chorando quando as palavras de Seun pareciam atingir seus ouvidos de forma universal. No entanto, estavam ali nigerianos, ganenses, etíopes todos tão diferentes entre si mas unidos por uma causa comum.

Ao perceber a sua importância dentro da música e no continente africano, Fela exerceria o seu poder para tentar se expressar contra as injustiças em seu país. Foi assim que ele lançou em sua vasta discografia, Zombie, disco subversivo e que se referia sob a forma de metáforas os métodos violentos do exército nigeriano. As consequências de tudo isso, infelizmente, passaram do campo das idéias e atingiram diretamente o saxofonista. Sua república foi incendida, sua mãe morta após ter sido jogada de uma janela(!) e todo o seu material musical perdido.

Expensive Shit é outro álbum fundamental para o conhecimento de seu som, e também tem uma história envolvendo militares e Fela. Uma tentativa de plantar evidências de uso de maconha, algo extremamente condenável naquele período, na antiga de república do músico, acabou o obrigando a engolir as evidências e depois se livrar das fezes. “Bosta cara” é a tradução livre do disco. Beast of No Nation tinha em sua capa Ronald Reagan, Margareth Thatcher e o primeiro ministro sul-africano Pieter Willem Botha com chifres de demônio em suas cabeças, um protesto direto do músico ao regime do Apartheid apoiado por EUA e Reino Unido.

Longe de transparecer amor, o Afrobeat era uma forma de expressão das questões sociais do continente Africano e Fela Kuti era o seu porta-voz. Tudo isso através de discos com normalmente duas músicas extremamente longas, hipnotizantes e que te deixam em um estado de espírito eufórico. A arte de seus álbuns também era uma forma de demonstração da arte africana, que hoje em dia viraram até exposição no Parque no Ibirapuera em São Paulo. Se o Jazz nasceu das origens rítmicas da Africa mas traduzidas em solo americano, o Afrobeat é a pura expressão musical in loco do povo africano, sob o comando de Fela Kuti. Como todo bom artista, nos deixou cedo, com 60 anos de idade vítima de AIDS. Mas como o improviso, o protesto e uma vida intensa faziam parte de seu dia a dia, podemos dizer que o músico morreu de acordo com o seus príncipios. Vida longa ao presidente negro.

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ARTISTA: Fela Kuti

Autor:

Economista musical, viciado em games, filmes, astrofísica e arte em geral.