Pink Floyd e o “Enigma de Publius”

Banda utilizou o mistério como uma forma de envolver os fãs e divulgar seu trabalho, algo que nomes como Boards of Canada fazem até hoje

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No primeiro semestre deste ano, como parte da estratégia de lançamento de seu novo álbum, a dupla escocesa responsável pelo Boards of Canada lançou, através de uma série de veículos midiáticos, uma sequência de enigmas que levavam a alguns detalhes sobre o recente disco. Começando com um vinil misterioso, passando por uma série de vídeos do YouTube, transmissão de rádio, chegando a um nível de detalhismo muito complexo – que revelavam alguns padrões criptografados em algumas imagens de fórum de fãs -, atingindo até mesmo o Cartoon Network, os caminhos complexos revelaram aos poucos, uma ordem numérica, que por sua vez, se tratava de uma senha, que, enfim, revelava o nome e a data de lançamento de seu álbum mais recente, Tomorrow’s Harvest.

Alexandre Matias acompanhou todo o processo de maneira detalhada em seu blog, e expõe todas as etapas desta estratégia de marketing enigmática. Você pode dar uma olhada aqui, e eu, particularmente, recomendo a leitura da trajetória toda e de suas minúcias, que são muito interessantes de acompanhar.

Tomando carona nesta história, vou relembrar neste artigo uma manobra muito próxima, que fez uso não apenas de enigmas em seu desenvolvimento, mas que também exigia, de certo modo, o afinco da participação dos fãs. De maneira igualmente bem construída, embora mais antiga e datando primórdios da internet, essa história vem de uma banda que sempre gostou de causar um estranhamento em seu público. Trata-se do Enigma Publius do Pink Floyd que, há cerca de vinte anos, foi um dos pioneiros nesta história, vamos a ele:

O Enigma Publius

Pink Floyd, como eu já disse, foi amplamente conhecido por suas criações que, desde sempre, causaram um estranhamento no seu público. Temos a história da sincronia do Dark Side of the Moon com o a versão do filme do O Mágico de Oz de 1939, uma lenda já vista e revirada inúmeras vezes, que não me deixa mentir.

Todo o processo da estratégia do novo álbum do Boards of Canada, desde o aparecimento do primeiro enigma, até a revelação da data de seu lançamento definitivo, durou cerca de uma semana. As coisas acontecem rápido na Internet, e imagino que tudo tenha acompanhado o nível de paciência do público contemporâneo. Mas em 1994, data do Enigma Publius do Pink Floyd, bem, as coisas não eram exatamente assim. Todo o processo da época demorou cerca de um ano e moveu milhares de pessoas e, por fim, nunca teve uma conclusão com termos definidos.

Tudo começou com uma mensagem publicada no fórum de fãs, um newsgroup da Usenet chamado alt.music.pink-floyd. Um mensageiro auto-denominado Publius apareceu repentinamente no grupo, dizendo que o novo álbum da banda, The Division Bell, era diferente dos demais e guardava um segredo. Na mensagem, Publius aconselhava os fãs a ouvirem, lerem e olharem todos os detalhes do álbum com mais atenção. Na época de lançamento do The Division Bell, Pink Floyd já era um fenômeno mundial, e, por isso, mesmo uma mensagem enigmática lançada num fórum online foi capaz de mobilizar milhares de pessoas. Você pode dar uma olhada em todas as mensagens de Publius aqui, que dizia revelar um propósito escondido e prometia uma recompensa justa para aqueles que desvendassem o segredo que o álbum guardava. Ao longo de vários meses, diversas teorias apareceram, e, apesar de todo o alvoroço que causou e da mobilização de diversos fãs em muitas possíveis soluções, apenas alguns fatos concretos se deram. E destes, muito poucos em direção ao que realmente importa no enigma: sua solução.

Com o crescente ceticismo de algumas pessoas do fórum, Publius resolveu provar sua veracidade. Assim, numa mensagem enviada no dia 16 de julho daquele ano, constavam algumas instruções, com os seguintes dizeres: “Monday, July 18. East Rutherford, New Jersey Approximately 10:30pm. Flashing white lights

A data e local anunciados diziam respeito ao próximo show do grupo, e, conforme prometido, durante a performance da banda, em seus famosos palcos megalomaníacos, as palavras “Publius Enigma” reluziram no proscênio. Estava, enfim, provada a existência real de Publius como integrante da equipe da banda, o que só fez crescer a afã em torno do tema. Outras evidências vieram depois. No DVD PULSE, de outubro de 1994, a palavra “enigma” aparece projetada no telão ao fundo do palco durante a execução da música Another Brick in the Wall (Part II). No encarte da reedição de A Momentary Lapse of Reason, a palavra Publius foi inserida na fotografia do homem com a foice no campo de centeio, e a palavra “enigma” foi inserida na imagem do homem à beira do abismo. As mesmas palavras podem ser ouvidas logo antes da música One of These Days na edição de 2003 do DVD Live at Pompeii. Assim como outras evidências menos óbvias em reedições de álbuns posteriores.

The Division Bell é um álbum temático, que trata essencialmente da falta de comunicação (e suas variações, como o isolamento, conflitos interpessoais e autodefesa). Além das letras de todas suas músicas, que estão direcionadas a esse tema, o nome do mesmo faz referência aos sinos do Parlamento do Reino Unido, que são tocados quando ocorre uma divisão de opiniões entre os parlamentares. Assim como a arte da capa, que mostra um rosto dividido em duas partes, ou mesmo duas faces falando ao mesmo tempo, uma de frente para outra.

Graças a toda essa série de evidências, que vão da imagem de homens à beira do abismo, passando pela catedral escondida ao fundo da capa do álbum, assim como a presença misteriosa de Publius, um mensageiro enigmático que nunca se revela e lança palavras de ordem aos fiéis, os fãs chegaram à conclusão de que o “x” definitivo deste imenso mapa do tesouro dizia respeito, justamente, à catedral. Lançou-se, na época, a lenda de que pessoas chegaram a escavar a igreja (ela existe de verdade, e pode ser vista bem no centro da imagem) em busca de um tesouro, quando, na verdade, o verdadeiro prêmio se dava numa mais esfera mais, digamos assim, metafísica. A grande recompensa seria religação espiritual do homem, uma conexão perdida já há muito tempo.

A banda nunca se pronunciou oficialmente sobre o assunto, embora tenha dado evidências reais de que Publius era integrante da equipe, de algum modo. Sendo por fim, na verdade, uma grande estratégia de marketing da equipe da gravadora EMI, o grande enigma permanece sem solução oficial até os dias de hoje. Talvez pelo desgaste ao tema e pelos recorrentes conflitos entre a banda em si e entre o selo responsável. De qualquer modo, foi uma lenda para fomentar o imaginário de muita gente por muito tempo. Inclusive o meu. É ótimo que hoje em dia, como vimos no caso de Tomorrow’s Harvest, ou as especulações sobre o próximo lançamento de Arcade Fire, esse tipo de manobra participativa e instigante ainda ligue as bandas com seu público de modo mais intenso e criativo.

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Autor:

é músico e escreve sobre arte