“In Utero”: O Último Capítulo da Trilogia Nirvana

Kurt Cobain terminava sua autobiografia, contada pela discografia da banda, há 20 anos

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Dentro do raciocínio lógico ocidental, o número três é aplicado diretamente ao contar das histórias: Obras em três volumes, peças em três atos, pinturas apresentadas em trípticos – se a primeira conta que aprendemos é 1 + 1 = 2, mais tarde descobrimos que a divisão por três é a mais interessante quando o assunto é uma narrativa. Afinal, toda história tem começo, meio e fim.

Uma discografia composta de três álbuns, como aconteceu com Nirvana, acaba gerando essa trilogia (ou seja, lógica em três) que narra a saga de Kurt Cobain, Krist Novoselic e Dave Grohl desde o introdutório Bleach (1989), passando pela reviravolta que foi Nevermind (1991) e culminando no conclusivo In Utero, que completa neste 13 de setembro seu vigésimo aniversário.

É claro que a banda não sabia que esse seria o último trabalho de estúdio de sua carreira, interrompida pela morte de Kurt Cobain em abril do ano seguinte. Ainda assim, In Utero veio como um digno último capítulo da história de uma banda que, por sua vez, ajudou a escrever a história do Rock do fim do século 20, uma guinada no roteiro que mudou a trama para sempre.

Mesmo não tenso sido planejado pra isso, quando você ouve os três discos em sequência, a abertura em Serve the Servants parece preparar terreno para uma grande conclusão. Cozinhada sob pressão, a faixa se desenvolve em uma tensão que só explode de vez na música seguinte, Scentless Apprentice – mais gritada, explosiva e visceral do que qualquer outra no disco, a única em que Novoselic e Grohl também assinam a composição, sua emoção crua nos relembra que não se trata mais da mesma banda de antes da repercussão de Nevermind.

E isso foi mais do que intencional. Nas mãos do produtor Steve Albini, o disco tem um caráter menos comercial e mais garageiro que seu anterior. Canções como Lithium e Smells Like Teen Spirit encontraram suas correspondentes mais maduras em Heart Shaped Box e Rape Me, respectivamente. O disco pode ter vendido duas vezes menos que Nevermind, mas cumpre seu papel de ir de encontro ao propósito da banda.

Sendo assim, algumas faixas são daquelas que qualquer um reconheceria como “essencialmente Nirvana”, como Frances Farmer will Have her Revenge on Seattle (com seus altos e baixos na estrutura) ou Dumb (e sua deliciosa ironia “I think I’m dumb, maybe just happy” do refrão), as duas músicas que vem na sequência aos singles. Ao mesmo tempo que fica difícil imaginá-las como grandes sucessos comerciais, são de uma qualidade impossível de passar desapercebida.

Very Ape segue o mesmo caso. Uma das mais canções com mais energia do álbum é daquelas que te pegam cada vez que você escuta, seja pelo vocal de Kurt tomando espaço dos instrumentos, inclusive de sua própria guitarra, bem mais ao fundo. Curtinha, ela introduz Milk It, que nos mostram de uma só vez o carisma da interpretação do vocalista cuja morte interromperia a vida da banda.

É aí que In Utero nos relembra quem é o verdadeiro protagonista do roteiro. Enquanto Novoselic decidiria seguir caminhos bem diferentes de Grohl, que soube se destacar com papel principal em seus projetos seguintes, Nirvana é seu principal vocalista. É difícil ouvir a melancolia desesperada de Pennyroyal Tea, por exemplo, e não imaginar que a vida deste anti-heroi seria interrompida meses depois de seu lançamento. É o turbilhão emocional de Kurt que movia o grupo na direção que suas músicas tomavam. Sem ele, a carreira é só memória.

Após essa faixa, o disco rumo à conclusão pós-clímax com Radio Friendly Unit Shifter e a curtíssima Tourette’s, até chegar ao single All Apologies, que encerra a história da banda com os emblemáticos versos “all in all is all we are” (“tudo em tudo é tudo o que somos”) ecoando à medida que os instrumentos cessam. Rolam os créditos, as luzes se acendem. Termina aqui a trilogia.

Um posfácio nos contaria o fato trágico após o fim do livro escrito. E não é um livro qualquer, mas a autobiografia do último grande ícone do Rock que conhecemos. Vinte anos depois, sabemos que o gênero não morreu, mas usa seu véu negro em luto pelo aborto após In Utero. Ficam as memórias, ficam as músicas, ficam as saudades.

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ARTISTA: Nirvana
MARCADORES: Aniversário

Autor:

Comunicador, arteiro, crítico e cafeínado.