R&B Anos 90 – Reavaliação Urgente

Listamos quinze discos do gênero que marcaram época e servem de lição para artistas atuais, por sua originalidade e produção

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Essa pequena amostra da produção da Black Music americana surgiu por acaso. Estávamos determinados a reunir alguns discos esquecidos dos anos 90 e vimos aumentar o número de álbuns legais no território do R&B/Rap. Daí pensamos que os anos 90 foram os últimos momentos de uma música negra ainda não totalmente cooptada pela indústria musical, ou, menos ingenuamente, com preocupação razoável com as matrizes do Soul, Funk ou R&B clássicos surgidos ao fim dos anos 50. Sendo assim, apresentamos esses quinze discos, um belo ponto de partida para você conhecer o que acontecia naquele início de década. A lista vai até 1996, quando o gangsta rap passou a dominar a cena, implodindo ou tornando inviável as outras vertentes. Pelo menos até agora.

Michael Jackson – Dangerous (1991)

Podemos dizer duas coisas de Dangerous. Ele é muito melhor que Bad, o disco anterior de Michael Jackson, lançado em 1987. E também podemos cravar que ele quase chega no mesmo nível de Thriller (1983) e Off The Wall (1979), dado o devido desconto. Michael surgia com uma tentativa louvável de atualizar seu som, de olho no chamado “new jack swing”, a nova música negra urbana da virada dos anos 80/90. Chamou Teddy Riley para produzir um blockbuster musical de 76 minutos de duração. Chamou Slash pra enguitarrar algumas canções e cravou hits como Remember The Time, Black Or White e Heal The World, mas deixou o tesouro de Dangerous em faixas que não galgaram as paradas como Why You Wanna Trip On Me, Jam ou a faixa título. Aqui foi a despedida de Michael.

De La Soul – De La Soul Is Dead (1991)

O segundo disco do De La Soul é um pequeno clássico. O trio de rappers e Long Island, New York havia surgido em 1989 propondo fundir hip-hop com psicodelia, rock, pop e mais um monte de coisas. Foram aclamados como pequenos gênios e Is Dead é a sequência desse conceito. O grande sucesso do disco e até hoje fazendo bonito por aí é A Rollerskate Jam Named The Saturdays, cujo clipe – logo abaixo – é uma ode à diversão ensolarada do sábado, com direito a patins no Roller à noite e churrascão e confraternização total no parque à tarde. De quebra, sample de Grease, de Frankie Valli. O que dizer?

PM Dawn – Of the Heart, Of the Soul and of the Cross: The Utopian Experience (1991)

Quem estava vivo em 1991 é capaz de lembrar do impacto que Set Adrift On Memory Bliss causou quando surgiu via MTV. Dois rappers, um magrelo e outro gordão, vestidos com roupas ripongas, mandavam um rap sereno, com samples de … Spandau Ballet, uma banda new romantic inglesa, cujo maior sucesso, True, foi devidamente chupinhado pela dupla. O resultado foi simplesmente sensacional e ajudou a cercar de expectativas o trabalho do PM Dawn. O primeiro disco, Of the Heart, Of the Soul and of the Cross: The Utopian Experience, vendeu loucamente ao redor do mundo e, apesar da boa qualidade dos trabalhos subsequentes, o PM Dawn sumiu no turbilhão da década. O primeiro disco ainda trazia semihits respeitáveis como To Serenade a Rainbow,Paper Doll e Reality Used to Be a Friend of Mine.

Arrested Development – 3 Days, 5 Months And 2 Days In The Life (1992)

Em tempos de criatividade total, a meta de muitos grupos e artistas do Rap era elaborar uma mistura do estilo que o fizesse soar novo, jovem e relevante. Para o pessoal do Arrested Development, liderado pelo rapper Speech, o tal caminho do rap alternativo passava por uma volta ao campo. Sim, mesmo o rap sendo um estilo musical eminentemente urbano, Speech e sua galera acreditam que o lugar do negro era em contato com a natureza e a vida fora do ambiente nervoso e estressante da metrópole. Claro que havia um subtexto poderoso de volta à África, mas, no caso do Arrested, já era satisfatório haver consciência do papel do negro na sociedade. Vieram sucessos irresistíveis a bordo do primeiro disco, 3 Years, 5 Months & 2 Days in the Life Of…, como Mr. Wendal, Fishing For Religion, Natural e Mama Always On Stage e um grande hit, Tennessee.

En Vogue – Funky Divas (1992)

No início dos anos 90, as herdeiras mais evidentes da tradição de girl groups negros, existentes desde os anos 60 na música pop´eram as meninas do En Vogue eram capazes de misturar a essência da black musica temporal com boas doses de harmonias pop, capazes de garantir um acesso a públicos maiores. Funky Divas é um dos mais sensacionais discos surgidos no início dos anos 90, capaz de oferecer soul, hip-hop, pop, dance e mesmo rock, garantindo a satisfação do ouvinte. Além de composições próprias, que galgaram as paradas, como My Lovin’ (You’re Never Gonna Get It) e Free Your Mind, ainda havia ginga e espaço para duas covers de Curtis Mayfield, Giving Him Something He Can Feel e Hooked on Your Love, mostrando que Maxine Jones, Dawn Robinson, Terry Ellis e a ex-Miss Beleza Negra California, Cindy Herron, sabiam o que estavam fazendo.

Janet Jackson – Janet. (1993)

A década de 90 marcou a ascenção de Janet Jackson, algo que já havia sido anunciado nos dois discos anteriores a Janet., Control e Rhythym Nation 1814. Livre da sombra do irmão Michael, algo que finalmente se confirmava nesse terceiro trabalho, Janet Jackson aprofundava a parceria com a dupla de produtores Jimmy Jam e Terry Lewis, com canções que podiam flertar com harmonias sessentistas, como What’ll I Do, além do hit That’s the Way Love Goes e ainda encontrar tempo para mostrar consciência política em The New Agenda avalizada pela participação do líder do Public Enemy, Chuck D. Como toque exótico, Funky Big Band reata conexões com a sonoridade dourada dos grupos dos anos 40/50, mostrando que tudo tem sua razão de ser.

Us3 – Hand On The Torch (1993)

Ao contrário do que muitos pensam, o Us3, um dos responsáveis pelo chamado “jazz rap”, surgiu do outro lado do Atlântico, mais precisamente na Inglaterra. Projeto de Geoff Wilkinson e Mel Simpson, cuja parceria rendeu uma canção em 1992, chamada The Band That Played the Boogie, que chamou a atenção de ninguém menos dos executivos da Blue Note Records, gravadora especializada em jazz desde a fundação do tempo. A proposta era gravar um disco pela gravadora com acesso liberado a todo o acervo de gravações acumuladas desde a Santa Ceia. Dito e feito, a dupla chamou três rappers, Kobie Powell, Rahsaan Kelly e Tukka Yoot, que criaram o primeiro e maravilho disco do grupo, Hand On The Torch, cujo maior sucesso foi Cantaloop, concebido a partir de samples de Herbie Hancock, mas a explosiva Tukka Youth’s Riddim também fez bonito nas pistas de dança.

Guru – Jazzmatazz (1993)

Na seara da fusão do jazz com o rap, veio também Keith Elam, mais conhecido como Guru. Egresso dos pioneiros do duo Gang Starr, Guru já arrisca flertes com a improvisação e o sampleamento sem dó de grandes standards jazzísticos. Quando partiu para a carreira solo, já tinha bolado o projeto Jazzmatazz, personificado no disco de mesmo nome, ou seja, trazer grandes nomes do jazz para um disco de hip-hop. Vieram luminares como Brandford Marsalis, Roy Ayers, Donald Byrd, Ronny Jordan, Lonnie Liston Smith, o rapper francês Mc Solaar e N’Dea Davenport, cantora dos ingleses do Brand New Heavies. Com sucessos como Transit Ride), No Time to Play Take a Look (At Yourself) Le Bien, le Mal, Jazzmatazz, Vol. 1 é, como dizia a crítica especializada na época, um disco de hip-hop para amantes do jazz e um álbum de jazz para amantes do hip-hop, duas circunstâncias bem diferentes, convenhamos.

TLC – Crazysexycool (1994)

Outro grande girl group dos anos 90, o TLC surgiu em Atlanta, formado por Tionne “T-Boz” Watkins, Lisa “Left Eye” Lopes e Rozonda “Chilli” Thomas. O trio, assim como as En Vogue, procurou aliar os ritmos negros mais tradicionais a elementos pop sem, no entanto, diluir ou descaracterizar a proposta. Isso ficou evidente a partir de seu segundo e mais bem sucedido álbum, Crazysexycool, que propunha uma mistureba calcada no tal new jack swing, aliado a pequenas células de memória contendo traços de Prince ou mesmo de alguns cantores e grupos dos anos 70. De vez em quando, Lisa Lopes aparecia com pequenos “raps” sobre as bases elegantes, como é o caso do grande sucesso Waterfalls, sem falar no bom desempenho de If I Was Your Girlfriend (cover de Prince) e Creep, que também fizeram bonito nas paradas de sucesso. O grupo nunca repetiu o êxito e teve problemas com Lisa Lopes, acusada de causar um incêndio no ano seguinte. A instável rapper morreria em 2002, vítima de um acidente automobilístico.

All 4 One – All 4 One (1994)

A década de 90 também foi pródiga com grandes grupos vocais, cuja proposta de revisitar o smooth soul do início dos anos 70 passou despercebida, causando um confinamento desses conjuntos à categoria de bregas ou pior, boy bands negras. All-4-One foi um desses injustiçados. Formado por Tony Borowiak, Jamie Jones, Delious Kennedy e Alfred Nevarez, o grupo surgiu na cena californiana, conseguindo um contrato e logo gravando sua estreia em 1994. O disco epônimo trazia o hit I Swear, que esteve nas paradas de r&b por mais de dez semanas.

Boyz II Men – II (1994)

Outro grupo vocal injustiçado ao longo dos anos 90. Os Boyz II Men, originários da Filadélfia, assinaram contrato com ninguém menos que a Motown em 1991, quando gravaram seu primeiro disco, Cooleyhighharmony, levando em conta os parâmetros do tal new jack sound, no caso dos Boyz, uma mistura bem sucedida entre doo-wop e hip-hop. Apesar do sucesso do primeiro trabalho, foi três anos depois, com II, que a banda decolou e acabaria por se tornar o grupo de r&b que mais vendeu discos na história. O primeiro single de II, I’ll Make Love to You, já entrou direto no topo das paradas, ficando lá por dois meses seguidos. Logo depois, o mesmo trajeto seria percorrido pelo segundo single, On Bended Knee.

Mariah Carey – Daydream (1995)

Mariah Carey teve, até 1997, uma carreira cheia de acertos no terreno da encruzilhada entre música pop e r&B. Dona de voz marcante e estilo nem tanto, Mariah foi responsável direta pela incorporação de gritinhos e floreios vocais desnecessários por toda uma geração de cantoras que a ouviram no auge. Há uma trinca de bons discos lançados pela moça nos 90’s, a saber, Music Box (1993), Daydream (1995) e Butterfly (1997), que a colocaram nos píncaros do sucesso. Daydream, lançado em meio a esta fama já estabelecida, trazia, pelo menos uma faixa sensacional, Fantasy. Era uma apropriação total de Genius Of Love, do Tom Tom Club (grupo formado por integrantes do B-52’s e o guitarrista Adrian Belew, entre outros), devidamente reempacotada para as pistas de dança da época. Mariah, ainda casada com o chefão da Sony, Tommy Mottola, era uma mocinha de ar suburbano, contraditoriamente inocente, supostamente em busca do amor ideal. Acreditem, funcionava que era uma beleza.

Montell Jordan – This Is How We Do It (1995)

Na metade da década surgiu o primeiro disco de Montell Jordan, destinado a cravar uma das grandes canções daqueles tempos: This Is How We Do It, homônima do álbum. Nativo de Los Angeles, Jordan frequentou corais de igrejas até permanecer quase dez anos em busca de algum contrato com gravadora, algo que só ocorreu quando a Def Jam o viu em algum barzinho noturno e decidiu apostar nele. O primeiro disco de Jordan não traz nada que alcance o mesmo nível da faixa título, mas possui bom material, passando bem longe do gangsta rap que imperava na área por aqueles tempos. This Is How We Do It esteve em primeiro lugar nas paradas da Billboard por sete semanas e vendeu mais de um milhão de cópias.

Blackstreet – Another Level (1996)

Outro grande grupo vocal dos 90’s, o Blackstreet foi fundado e levado adiante pelo produtor pioneiro da sonoridade do r&b noventista, Teddy Riley. O sujeito vinha fortificado pela produção de Dangerous e cheio de moral para colocar suas ideias em prática. Com a altíssima rotação que alcançou ao redor do mundo, No Diggity (com a participação do rapper Dr.Dre) foi o grande êxito de Another Level, o segundo disco lançado pelo grupo em 1996. Novamente a fórmula vencedora de tantos cantores e grupos do estilo é posta em prática, ou seja, a fusão com elementos do pop e do soul urbano, resultando em grandes níveis de qualidade.

Fugees – The Score (1996)

Fugees foram a última formação dentro da música negra a oferecer alguma novidade. Já era um cenário dominado pela variante mais empobrecida do estilo, o gangsta rap, que privilegiava gente como Snoop Dogg e Puff Daddy, sobrando pouco espaço para quem se arriscava a colocar música à frente de outros fatores. Inesperado, inspirado e cheio de detalhes, The Score deve ser ouvido com fones de ouvido, novamente abusando da proximidade com o pop. O trio formado por Pras, Lauryn Hill e Wycleaf Jean funciona que é uma beleza e sua versão para Killing Me Softly With His Song, de Roberta Flack e No Woman, No Cry, de Bob Marley, circularam pelo planeta. Canções próprias como Fu-Gee-La, The Beast e Family Business)também fizeram bonito. Logo após esse disco, o trio seguiria separado, cada um mantendo sua carreira solo, quase sempre mandando bem.

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Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.