“Quadrophenia” – Entendendo os Mods com The Who

Fruto direto de sua geração, Pete Townshend exorciza seus demônios nesta Ópera Rock lançada em 19 de outubro de 1973

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Se você fosse jovem na Londres da virada dos anos 50/60, certamente estaria entre os mods. Ou entre os rockers, vá saber. O fato é que havia uma distinção importante entre essas nascentes tribos urbanas na Inglaterra do pós-guerra: a música. O ideário mod, abreviação de “modern” e sua aplicação na vida de um adolescente londrino, passava, necessariamente, pelos caminhos do Jazz, R&B e Soul (mais tarde seria acrescentado a esses ritmos o Ska). A grande diversão deles era sair pra noite usando ternos de corte italiano, calças de tecido e sapatos cromados. Eram filhos de comerciantes de tecido estabelecidos na cidade e se preocupavam muito com o visual. Movidos a anfetaminas, os mods, quase sempre, se locomoviam por Londres em suas scooters, que poderiam ser Vespas ou Lambrettas, o que possibilitava que eles transitassem pelas ruas após o fim das atividades dos transportes públicos da capital do Império. Entre esses sujeitos, que poderiam ser pobres ou de classe média, estava Peter Dennis Blandford Townshend, o cérebro por trás do The Who.

Claro, uma banda plural e brilhante como essa não tem apenas um cérebro funcionando, no caso, além de Townshend (guitarras), Roger Daltrey (vocais), John Entwistle (baixo) e Keith Moon (bateria) compunham uma entidade musical sólida e segura, ainda que formada por esses sujeitos tão diferentes. Essa diversidade, essa polivalência é o grande mote de um disco genial que chega ao seu 40º aniversário no dia 19 de outubro de 2013: Quadrophenia. A majestade desse álbum duplo está em várias nuances. Antes de mais nada, ele é uma Ópera Rock, com uma história que conduz as músicas, com detalhes e pormenores que fazem o ouvinte ter certeza que não está diante de mais um feixe de canções confinadas a um disco por acaso. Em Quadrophenia, apesar do uso de alegorias e metáforas esquisitas, tudo faz absoluto sentido e se adequa a algo muito familiar a todos: crescer, ficar adulto e lidar com as mudanças que vêm com isso.

A história do disco é a seguinte: Jimmy é o personagem principal, morador de Londres, mod assumido e convicto, que passa seus dias de adolescência brigando com os rockers (a outra grande tribo urbana de Londres, formada por adolescentes topetudos, que andam de moto e ostentam seus casacos de couro, com gosto musical formado exclusivamente por rock americano). Mods e rockers, devidamente turbinados por comprimidos de anfetaminas, gostam de entrar em choque sempre que se encontram, a ponto de marcar verdadeiros confrontos em cidades próximas a Londres, como Brighton, por exemplo, onde encontramos nosso herói Jimmy, logo que o disco começa. Em tempo: Jimmy sofre de distúrbio de múltiplas personalidades, assumindo, à medida que o disco avança, as personas de um dançarino desengonçado, mas durão, um romântico incorrigível, um louco e um mendigo. Sim, é evidente que Jimmy tem problemas e, para resolvê-los, vai periodicamente a um analista.

Essa maluquice é o fio condutor do disco. Townshend estava se referindo a sua própria personalidade difícil. Nascido em Londres no fim da Segunda Guerra (19 de maio de 1945), ele integrou a primeira leva da geração dos Baby Boomers, o pessoal nascido após o grande conflito, pronto para viver num mundo “novo e livre”. No caso de um adolescente inglês, ser jovem significava enfrentar um mundo que ainda lambia suas feridas em meio a cidades destruídas pela guerra, sem perspectiva de futuro ou emprego descente. Além disso, era exepcionalmente difícil se dar bem com as meninas, especialmente para Townshend, que não era uma figura exatamente bela em termos estéticos. Sendo assim, seguindo os impulsos típicos da meninice, Townshend abraçou os preceitos mods, precisava de iguais, de pares, a fim de enfrentar a realidade. Refugiou-se na música, aprendeu a canalizar sua fúria do mundo nas seis cordas de sua guitarra e isso impregnou totalmente a música de sua banda.

Em 1973, The Who já havia deixado a sonoridade furiosa da encruzilhada entre o Rock britânico e o R&B americano para trás. Já era capaz de fazer sua própria sonoridade, identificável facilmente pelo ouvinte. Como disse antes, era uma unidade de quatro cabeças, exatamente o aspecto explorado por Townshend na confecção da história de Jimmy e sua esquizofrenia quádrupla (de onde vem o nome Quadrophenia). Este foi o sexto disco de estúdio da banda, que adentrara os anos 70 com um dos maiores álbuns de todos os tempos, Who Are You, lançado em 1971.

A banda dava sequência ao conceito de Ópera Rock, iniciado com Tommy em 1969. Quadrophenia não alcançou o status da primeira experiência, imortalizada em filme, apesar de ter ganho uma versão cinematográfica em 1979, estrelada por Phil Daniels, aquele sujeito que canta Parklife, do Blur. O disco, por sua vez, conduz a narrativa tendo quatro canções como pilares: Helpless Dancer, Is It Me?, Bell Boy e Love Reign O’er Me, esta última trazendo o fim (que se torna início) da história de Jimmy, no qual ele, após pegar um barco no litoral de Brighton, após um confronto de três dias entre mods e rockers, encontra-se em alto mar, agarrado a um rochedo, enquanto, de acordo com a fixação de Townshend por água como sinônimo de renovação, é atingido em cheio por uma chuva torrencial, que marca o começo da história a ser contada. Quadrophenia é grande arte, apesar de parecer meio desconexo. O disco é soberbo, a sonoridade é grandiosa e totalmente necessária, sem comprometer um segundo de audição.

The Who não visitaria mais o terreno das Óperas Rock com tanto vigor, mas Townshend encontrou em Quadrophenia uma eficaz maneira de exorcizar seus demônios e manifestar-se veementemente sobre a sociedade inglesa dos 60’s, uma época que sempre nos parece linda, bela e glamurosa, quando, na verdade, parecia ser olho por olho e dente por dente, doa a quem doer.

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ARTISTA: The Who
MARCADORES: Aniversário

Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.