Cadê: Coração Selvagem – Belchior (1977)

Uma das figuras mais enigmáticas da MPB tem também um dos discos mais raros dos catálogos

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No fim dos anos 60, havia um movimento involuntário na cultura musical brasileira, de direcionava as atenções para artistas nascidos aqui, que fizessem música identificada com o país. Engraçado que essa tendência não era oriunda da Tropicália, ainda que esta tenha sido um movimento que buscava reinterpretar o Brasil e tudo que dissesse respeito a ele, só que levando em conta a modernidade como mote principal. Os tropicalistas não eram nacionalistas, pelo menos não no sentido estrito do termo, talvez fossem brasileiros cidadãos do mundo, ou algo assim. O fato é que a visão plural da Tropicália e o encorajamento proposto por ela em termos de valorizar o que é brasileiro como parte do que é mundial, tornou viáveis as aspirações de muita gente ao longo do território nacional, que tivesse ocupado seus sonhos com um futuro fazendo música.

Em Fortaleza, capital do Ceará, não foi diferente. Na virada das décadas 60/70, era possível detectar o aumento de cantores, compositores e intelectuais jovens, todos interessados em manifestar suas opiniões sobre praticamente todos os assuntos. Em torno do Diretório Central dos Estudantes da Universidade Federal do Ceará, uma turma de jovens aspirantes ao sucesso e relevância nacionais como compositores e cantores logo surgiu. Raimundo Fagner, Ednardo, Amelinha, Têti e, entre eles, Antônio Carlos Belchior, um sujeito que vinha do interior do estado, mais precisamente de Coreaú, próximo a Sobral. Ele chegara em Fortaleza em 1962, filho de pais músicos e sobrinho de tios boêmios.

Chegou a cursar até o quarto ano de Medicina na UFCE até abandonar os estudos por conta da carreira artística. Em 1971, depois de vincular-se ao “Pessoal do Ceará” (como era conhecido o coletivo de amigos), Belchior mudou-se para o Rio de Janeiro e venceu o IV Festival Universitário de MPB, no qual Jorge Melo e Jorge Teles defenderam sua composição Na Hora do Almoço. No ano seguinte, já morando em São Paulo, viu sua parceria com Raimundo Fagner, “Mucuripe”, ser gravada por Elis Regina. Em 1974, Belchior lançaria seu primeiro disco, homônimo, chamando a atenção da gravadora Polygram. Dois anos depois, viria seu maior sucesso, Alucinação, com os hits Como Nossos Pais, A Palo Seco, Apenas Um Rapaz Latino Americano, entre outras. Elis gravaria também as duas primeiras canções, mas Belchior iria para outra gravadora, a Warner.

Seu terceiro disco, Coração Selvagem, é uma pequena obra-prima. É o ápice do Belchior compositor, filósofo e discreto cronista de um cotidiano cruel, que já se insinuava sobre as pessoas naquele 1977. Sua interpretação da faixa-título é um dos maiores momentos do blues made in Brazil, devidamente temperado por versos matadores como “mas quando você me amar, me abrace e me beije bem devagar, que é para eu ter tempo, tempo de me apaixonar” ou “não quero o que a cabeça pensa, eu quero o que alma deseja, arco-íris, anjo rebelde, eu quero o corpo, pois tenho pressa de viver”. Jamil Joanes toca baixo e Hélio Delmiro conduz guitarras e violões. O arranjo de cordas de Paralelas, outro sucesso, que já registrado em 1975 por Vanusa, trazia toda a beleza distópica da canção. A letra, igualmente rica, vinha com versos que ganharam fama como “No Corcovado, quem abre os braços sou eu, Copacabana, esta semana, o mar, sou eu, como é perversa a juventude do meu coração, que só entende o que é cruel, o que é paixão”. O disco ainda traz outros belos exemplos da poética belchioriana, como “Galos, Noites e Quintais” e a subestimada Populus, assombroso conto sobre a relação entre pobres, ricos, trabalhadores e patrões.

Belchior não conseguiria reeditar o sucesso destes dois trabalhos, Alucinação e Coração Selvagem, com sua homenagem a John Lennon, Comentário A Respeito de John (1979) sendo, provavelmente, seu último grande hit. Ele se manteve produtivo, gravando discos para a Warner até 1982, depois passando para a Odeon e um sem número de gravadoras ao longo dos anos seguintes. Hoje Belchior é um misterioso e recluso personagem de histórias trocadas e suspeitas sobre abandono de sua vida em favor de uma existência sem bens, na qual o cantor/compositor seria devedor de milhares de reais em hospedagens em hotéis, faturas de cartões de crédito não pagas, apontando para um fim triste para este que é um dos grandes letristas da música brasileira.

Coração Selvagem foi lançado em CD em 2000 na série Warner Achives e está fora de catálogo desde então. Pode ser encontrado em sites da internet por valores que oscilam entre R$150,00 e R$200,00.

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ARTISTA: Belchior
MARCADORES: Cadê?

Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.