Houve Uma Vez o Black Rio

Uma das épocas mais ricas de nossa história musical merece ser conhecida e redescoberta

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Quem ouve a produção atual de artistas do segmento Black Music no Brasil deve ficar assustado. O estilo se resume à produção do chamado Funk Carioca e ao Funk Ostentação. Além deles, artistas como Anitta e Naldo conseguiram se apropriar de elementos do Pop e misturá-los com doses dessas vertentes mencionadas acima para formar uma liga dançante e de grande aceitação por parte do ouvinte médio. Descontando o terreno do Samba (igualmente pilhado por hordas de grupos de pagode Romântico há mais de duas décadas), a Black Music do país tem uma espécie de “caixa preta” (sem trocadilho), na qual estão contidos os elementos responsáveis pelo surgimento de uma geração luminosa de artistas nos anos 70. Estamos falando do Movimento Black Rio.

Ter conhecimento da produção musical à época do Black Rio é uma faca de dois gumes: se, por um lado, é possível ouvir belíssimas canções e se impressionar com a habilidade de músicos e bandas do período, por outro lado, comparar a criatividade de então com o que existe hoje, é um exercício de tolerância, com certeza de desânimo no fim. Simplesmente há um abismo estético entre as gerações, um verdadeiro fosso criativo. O Black Rio foi uma espécie de resposta a uma época de contestação, de luta por direitos humanos, de uma procura involuntária por uma identidade negra universal, com base no que os negros americanos reivindicavam e que os africanos recém-libertos do domínio colonial europeu se permitiam fazer em sua terra, após séculos de diáspora para América e a própria Europa. Não se trata de nostalgia, mas, quando vemos uma geração de jovens “músicos” idolatrando carros e motocicletas, ocupando um lugar que já foi de gente que se preocupava com igualdade e identidade, é inevitável ter saudade ou questionar se as lutas e desejos de ontem resultariam, inevitavelmente, no panorama de hoje. Mesmo que a reflexão seja válida, o que importa é a música, vamos a ela.

Podemos detectar o início da cena Black Rio a partir do sucesso de artistas como Toni Tornado, Gerson King Combo e, em escala menor, Wilson Simonal. Os dois primeiros tiveram a chance de viajar para os Estados Unidos e conhecer de perto algumas das agruras das populações negras de lá, especialmente Tornado, que esteve no Brooklyn de meados dos anos 60 como imigrante ilegal. King Combo esteve em cruzeiros pelo Caribe como integrante da banda de Erlon Chaves e também pôde se aproximar da comunidade artística negra americana da época, especialmente James Brown. Simonal, bem menos intenso nesse sentido, imitava cantores americanos com um inglês que tinha muito de “embromation”, mas que atingia altos níveis de genialidade. Seu momento mais intenso foi com Tributo A Martin Luther King, lançado em 1967. Mas, se Simonal cantava “luta negra demais para sermos iguais”, Tornado vinha com visual decalcado dos brothers americanos, interpretando Br3 no V Festival Internacional da Canção, com direito a dança jamesbrowniana e tudo mais. Bem mais radical, Tornado também enfiaria o pé na porta perguntando “e se Jesus fosse um homem de cor?”, canção de Claudio Fontana, lançada em 1976. A verdade é que havia uma espécie de linha direta entre artistas e ativistas negros americanos e uma multidão de pares em outros países, numa espécie de conexão em busca de uma identidade negra universal, algo que dependia muito das manifestações artísticas, sobretudo musicais.

Havia um interesse pela música negra americana, algo que parecia mais autêntico aos ouvidos dos jovens músicos negros cariocas que o próprio samba, que eles consideravam esvaziado de suas raízes negras e cada vez mais próximo de ser uma espécie de manifestação vazia, endereçada aos brancos e turistas do carnaval. A Soul Music e sua variante psicodélica e dançante, o Funk, eram os ritmos a serem explorados. A ideia era misturá-los com outras sonoridades presentes há mais tempo no repertório musical nacional, como o próprio Jazz e suas apropriações como o Samba Jazz. Dessa mistura explosiva, viria a sonoridade que marcou o início dos anos 70. Ao mesmo tempo, havia uma grande movimentação no Rio em torno de grandes festas. Conduzidas principalmente pelos DJs Ademir Lemos e Big Boy (também radialista), os chamados Bailes da Pesada, conseguiam reunir multidões entre 10 e 15 mil pessoas em lugares que poderiam ser clubes de subúrbio ou no badalado Canecão, na Zona Sul da Cidade.

Todo esse clima fez com que os músicos se encorajassem a montar bandas e se mobilizar. Tim Maia teve seu primeiro disco em 1970, mas, apesar de ser um artista com grande penetração nesse segmento e se valer de misturas de ritmos nacionais com as matrizes americanas, nunca foi diretamente conectado ao Black Rio. Assim como ele, Jorge Ben, outro medalhão estabelecido na época, nunca se aproximou dessa cena fervilhante. Um compositor, multiinstrumentista e cantor de grande talento seria um dos primeiros a se juntar a Tornado e King Combo nas fileiras do Black Rio: Genival “Genial” Cassiano. Egresso do grupo Os Diagonais, Cassiano lançaria três discos essenciais e preciosos entre 1970 e 1976 (Imagem e Som, Apresentamos Nosso Cassiano e Cuban Soul 18 Kilates), emplacando hits nas paradas de sucesso, fosse através de interpretações de outros (Tim Maia com Primavera) ou suas como em Coleção, Salve Essa Flor e a belíssima A Lua e Eu. Além de Cassiano, o próprio Gerson King Combo teve sua apresentação ao grande público logo depois de deixar a banda do maestro Erlon Chaves, mas só seria sucesso incontestável em meados da década, quando integrou o combo União Black, partindo para uma incendiária carreira solo. Gerson já era famoso por seus shows no subúrbio carioca, no qual comparecia vestido de rei a bordo de carrões de luxo. Seu primeiro disco, Volume 1, de 1977, é discoteca básica incontestável.

Nem tudo era fácil para os artistas do Black Rio. Lembramos, só para constar, que o Brasil vivia o auge do governo Médici, seu momento mais duro em termos de ditadura militar, sob a vigência do AI-5. Isso dava poderes à polícia para invadir bailes e festas com o missão de “averiguar” o ambiente, além de trazer embutido nessa ação o grande e velado preconceito racial que habita a classe média brasileira desde sempre. Mesmo assim, sob o medo constante de que haveria uma guerra civil no país se as comunidades carentes se conscientizassem, o Black Rio permaneceu e influenciou muita gente, até nomes sem conexão aparente com a cena, como Elis Regina, que chamou Erlon Chaves para arranjar seu disco de 1971, no qual cantava Black Is Beautiful, composta por Marcos Valle. O título da canção trazia o próprio lema dos militantes negros americanos, além de uma letra na qual vinham os versos “Hoje cedo, na Rua do Ouvidor, quantos brancos horríveis eu vi. Eu quero um homem de cor. Um deus negro do Congo ou daqui”. Erlon Chaves, segundo consta, fora preso e torturado pela ditadura militar após interpretar, com sua orquestra, Eu Também Quero Mocotó, canção de Jorge Ben, sobre… sexo oral. Por mais que houvesse o suposto medo a respeito de uma possível organização político-ideológica negra no Brasil, o próprio Black Rio não trouxe qualquer artista mais engajado. A utilização de imagens e símbolos visuais “importados” dos Estados Unidos não tinha uma aparente intenção de engajamento de qualquer espécie.

Um cenário que tinha Cassiano, Tim Maia, Gerson King Combo e Toni Tornado, além de Hyldon, Dom Salvador, Bebeto, Tony Bizarro, Robson Jorge, União Black, Orlandivo, além dos novíssimos discos das chamadas equipes de som – grupos de DJs que escolhiam as músicas dos nascentes “bailes funk”, como Soul Grand Prix (RJ) e Chic Show (SP), veria a chegada de mais artistas inspirados nessa estética, com destaque para a “nossa Donna Summer” Lady Zu, cujo primeiro disco, A Noite Vai Chegar (1977), teve sua faixa título na trilha sonora da novela global Dancing Days. Ao lado de Zu, a própria Banda Black Rio, formada por integrantes de antigas formações do subterrâneo musical carioca, Impacto 8 e Abolição, teve seu primeiro disco, Maria Fumaça, lançado no mesmo ano, com grande sucesso. Ao mesmo tempo, Gilberto Gil divulgava seu manifesto sobre o pensamento negro do momento – mais universal e menos focado no Rio – chamado Refavela, fruto de uma viagem reveladora à Nigéria para partipação no Festival de Artes e Cultura Negra, o FESTAC.

Mesmo sólida e rentável para as gravadoras, a cena Black carioca deixaria de existir em pouco mais de dois anos. Com o avanço da Disco Music nos Estados Unidos e o embranquecimento que o estilo sugeria, o engajamento e as roupas coloridas deram lugar à estética da dança como meio de purgar as agruras da vida e do cotidiano. A tendência se refletiu aqui de forma implacável e a desmobilização foi geral. Em 1980, já não havia algum integrante da cena com algum grande lançamento e mesmo Tim e Jorge Ben iniciariam períodos de decadência em suas discografias. As consequências imediatas foram sentidas nos bailes funk cariocas, que começaram a se abastecer de música americana sem o contraponto dos artistas locais, algo que só foi acontecer novamente ao fim da década, com gravações como Rap da Rapa, com o veterano Ademir Lemos. Mesmo relevante culturalmente, a cena surgida no início dos anos 90 é bem diferente do que existia no Black Rio, muito mais indicada para os quadris que para o cérebro.

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Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.