Chora, Cavaco: O Ano em que Aceitamos o Luto pela MPB

Período fértil para a música jovem do país expressa também necessidade de novas mentalidades

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Não sejamos ingênuos: 2014 não foi um ano decisivo para a música brasileira. Não houve qualquer ponto de mudança ou ruptura, muito menos uma única obra que carregue a responsabilidade de ícone de algum movimento cultural ou estética. Foi, contudo, um período fértil pra quem plantou, pra quem colheu e, principalmente, pra quem soube ouvir. Um capítulo na história que, se não trouxe uma reviravolta na trama, levantou questões e promoveu diálogos pras fichas caírem.

E o que é a música brasileira no meio desta década? Pra explicar melhor, chamamos isso no Monkeybuzz de Pós-MPB, termo que engloba mais um momento cultural do que um estilo de fato, mas acaba definindo também um tipo de som. Já publicamos artigo e playlist sobre o tema e chegou a hora de deixar mais claro o que essa classificação significa.

“Esse negócio de MPB é meio vago”, nos contou o paulistano Mauricio Pereira. “Pra mim, hoje, é um meio campo, um terreirão, um gênero que comunica outros gêneros entre si e ao mesmo tempo se comunica com eles, tipo tem um pezinho no Rock, outro no Brega, outro no comércio, outro em trabalhos mais experimentais, como a chamada ‘Vanguarda Paulista’, muitos pés no Samba, Flerta com o Jazz, é o abrigo dos compositores-cantores”, diz o músico, que continua explicando que o termo “nasceu ali na época dos festivais dos anos 60, é uma música que tem a ver com a classe média urbana brasileira, que, num certo momento, produziu uma música de rádio com alguma informação intelectual a mais, uma parada que é meio filha da Bossa Nova”. Por essa natureza tão plural, fica insuficiente taxar um trabalho como “MPB”, já que a classificação pode agrupá-lo a outros discos ou faixas que não teria mais nada em comum com ele a não ser o país de origem.

Quando questionado sobre o termo, Lenine nos declarou: “Pra mim, é ‘Música Planetária Brasileira’”, e explica que “convém ser chamado de MPB o que tiver sido feito por um brasileiro”, uma definição tão certeira, quanto reveladora da problemática, caso insistamos em usá-lo como classificação de gênero. Pior ainda, se antes havia uma valorização da música chamada assim (pelas boas características que Pereira explicou), hoje, após a “pasteurização” que fez a arte mais lucrativa há algumas décadas, é comum ouvir que um músico ou banda não gosta de ser chamado assim.

“Simplesmente irrelevante” é como César Lacerda nos explicou a defesa de valores que a classificação pode carregar, “se observados os caminhos livres que a música feita no Brasil decidiu percorrer”. O mineiro, radicado no Rio, confessa também que, hoje em dia, “a ‘atemorizante’ sigla, me soa inofensiva e, por conter em si toda a redundância do mundo, acaba por ser um verbete prático, de comunicação imediata e funcional”, o que é justamente o problema dado: Todos parecem saber o que é MPB, mas cada um acha que é uma coisa diferente.

Enquanto tantos insistem que foi o Rock quem morreu, o tal “gênero” tupiniquim parece arrastar-se pelas décadas por entre irrelevâncias e subjetividades como um zumbi, indo de encontro à sua função de definir ao mostrar-se um conceito ora confuso, ora desnecessário. Daí a urgência de declarar o momento em que vivemos como um passo a frente, ou “depois” disso tudo. E é então que vem o sufixo “Pós” na expressão.

Sabemos bem que uma velhíssima guarda já “acabou chorare” há muito tempo e o momento seguinte veio declaradamente “mutante” (ou “metamorfose ambulante”), com orgulho de “caetanear o que há de bom” em clubes de esquinas cercados de hermanos. Inspirados pelo mesmo espírito de quem já fez muita coisa boa antes, os artistas de hoje em dia continuam, do seu jeitinho, aquilo que de mais brasileiro há nos movimentos culturais há cem anos: A habilidade de misturar em prol da renovação.

É o que aprendemos na escola como “Antropofagia”, a ingestão de referências estrangeiras que gera algo propriamente nosso. Foi assim que nasceu o Samba, depois a Bossa Nova, Axé Music e Funk Carioca – para citar os mais conhecidos. E quem faz música relevante no Brasil hoje, o pessoal que chamaremos de Pós-MPB, tem isso não mais como um alvo ou uma motivação, mas como a mais completa naturalidade.

É a geração que cresceu cercada por música daqui e dali ao mesmo tempo – e nem me refiro a tecnologia, mas a aceitação. É quem trocou o “nacional” pelo “brasileiro”, a bandeira pela identidade própria, a arte pela arte. Tem pandeiro e distorção, ginga e psicodelia. Tem a ver com as filosofias inclusivas de nosso tempo, assim como os novos meios de produção e distribuição de música. Mais importante que tudo isso, é resultado direto de uma postura crítica com o que já foi feito, tanto quanto com a liberdade criativa de fazer do seu jeito. Daí ser Pós, daí ser hoje.

“A arte é sempre mais imprevisível do que essas classificações”, comentou Maurício Pereira no papo que precedeu este artigo. “E hoje as coisas se misturam muito, e em velocidade muito grande”, continua, “tem caras do Rock ou de gêneros de uma pegada mais popular ou comercial (que, em tese, não são a tal “MPB”), tipo Sertanejo ou Pagode, que acabam gravando coisas do repertório do que se chama MPB, e vice-versa”. Pra César Lacerda, ao mesmo tempo, “a MPB é uma tia solteirona”, cujo “diploma de datilografia já não serve mais pra muita coisa. Comprou um computador e aprendeu a fazer download e hoje, quando recebe os sobrinhos em casa, diz que não tem tanta paciência para os garotos do fofo-pop, mas se emociona com o comercial da Clarice Falcão pro Pão de Açúcar”. Por todos os lados, fica claro que a nomenclatura não dá conta do que vivemos hoje.

E Pós-MPB é isso, é a época que veio depois, com liberdade de sair do Tom e querendo a bênção mais de outro Jorge que não o santo. É quem coloca o gringo pra sambar não como obrigação nacionalista, não pra “representar o Brasil lá fora”, mas porque expira o que vem de raízes muito inspiradas. E, por último, é a forma mais eficaz de unir de uma só vez artistas bem diferentes e que, se apenas MPB não explica o som que faz, o termo indica o momento do qual faz parte.

Se em 2015 é irrelevante falar em MPB, ouvi-la não era tão necessário há muito tempo. E vale a pena jogar fora também os clichês de “Nova MPB”, seja porque isso também nunca comunicou muito, porque (se você prestou atenção nos argumentos até agora, tem certeza disso) a nossa arte é sempre jovem (essa molecada Tom Zé, Gil e Caetano não me deixa mentir), sempre com um frescor, e ainda porque “‘Novo’ é aquilo que já foi esquecido”, como Lenine nos lembrou. E a música de hoje é memorável, está aí pra ser amada, idolatrada, salve salve. Ouça os discos de 2014 e não tenha dúvidas.

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Autor:

Comunicador, arteiro, crítico e cafeínado.