“Quando canto sobre amor, não é só sobre amor”: Baco, da ‘Disgraça’ ao Blues

A inquietação criativa do artista baiano permitiu que, pouco tempo após o aclamado “Esú”, fosse lançado o conceitual “Bluesman”, acompanhado de um curta

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Fotos: Alex Takaki

O relógio em seu pulso marcava 13:37, enquanto meu celular dava uma hora a mais. Pelo visto, Baco Exu do Blues não viu relevância em acomodar-se ao horário de verão, já que essa fase passa em poucos meses. Ou isso, ou ele optou por estar no fuso da Bahia em que morava até pouco tempo atrás, onde os relógios não foram alterados. Dos dois palpites, aposto no primeiro.

É grande sua paciência para responder entrevistas e posar para fotos – duas atividades tediosas e frequentes na temporada de lançamento de um disco -, mas sua inquietude não tenta ser escondida no bater na mesa, ao brincar com qualquer coisa à mão, com o mexer dos pés enquanto fala. Sua voz é calma e sua postura, descontraída. Sabemos, entretanto: Baco é pura força e, mesmo sentado, não para.

“Minha vida é trabalhar 24h por dia”, conta ele, “se não tô trabalhando em música, tô trabalhando em conceito, ou trabalhando na música dos outros. Eu vivo 100% em função da música, em função da criatividade”.

Não é surpresa alguma que só catorze meses separem seu primeiro álbum, Esú, do novo Bluesman, com uma “trilogia” de faixas que saiu em setembro, quando o trabalho de estreia fez aniversário. “É tudo um bagulho de não parar”, diz ele, “eu sei os passos que eu quero dar, tá ligado? Eu sei quais são meus próximos quatro discos, eu sei o que eu quero falar”.

E ele fala dele mesmo, principalmente, com “eu” e verbos na primeira pessoa – de “Te engravido toda noite” a “Eu sou o preto mais odiado que você vai ver” – sendo repetidos a cada poucos segundos no disco. Como ele explica: “Minhas características são de luta. Quando falo de mim, falo de luta. E quando a gente fala de luta, fala de várias pessoais. Tipo quando eu falo ‘Eu sou o preto mais odiado que você vai ver’, todo preto que estiver em um ambiente de branco vai ser o preto mais odiado naquele momento. É sobre isso, é sobre o sentimento das pessoas. Todo preto já se sentiu a pessoa mais odiada do mundo”.

“Não se nivela só na questão racial, mas em várias minorias. Acho que toda mulher já se sentiu a mais odiada do mundo, então ela vai entender aquela frase. Um gay vai ouvir aquela frase e vai entender aquela frase. É uma dor conjunta, é uma dor de minorias”.

Era véspera de lançamento de Bluesman, o que certamente contribuiu para toda a inquietação durante a entrevista, com “dá tempo de fumar um cigarro?” sendo perguntado de vez em quando aos assessores. “Fala rápido, sem pensar: Esú ou Bluesman?”, diz do outro lado da sala com um dedo apontado para mim enquanto ele pega uma água. Não se trata nem um pouco de insegurança, é pura empolgação de quem será pai de mais um disco em algumas horas.

Pode ser curioso pensar em cenas assim que humanizem Baco Exu do Blues, visto que muito de seu trabalho é construído em cima de sensibilidade (como ele mesmo versa, “Eu sou um dos poucos que não esconde o que sente”).

“Existe uma carência de ouvir de uma pessoa que ela também não tá bem, uma necessidade de se expôr”, explica ele, “a masculinidade é uma barreira muito grande. Dentro do Rap, é uma Muralha da China. Quando você se abre e fala ‘sou humano’, as pessoas vão falar ‘caralho, por que ele tá falando isso?’ (risos)”.

“O Esú tem uma força com as pessoas que passaram pelo mesmo processo que eu de depressão que é uma coisa muito impactante”, ele conta,”você vê as pessoas falando sobre a como você praticamente salvou a vida delas só por dizer que tinha o mesmo problema. Foi o suficiente para ela se sentir abraçada. Eu não precisei ouvir os problemas dela, eu não precisei tentar resolver os problemas dela, só precisei dizer que eu também estava com o problema. Foi o suficiente para as pessoas sentirem que alguém entende. Eu acredito que o não estar sozinho é fundamental pra todo mundo, até quando você tá na merda. Isso é bem escroto, porque, parando pra pensar, é ‘caralho, tô fudido aqui, mas tem outra pessoa ali fodida igual eu’ (risos) ‘não tá tão ruim assim então’. É bem doido isso”.

É aí que voltamos ao assunto das narrativas de luta ao falar de si mesmo e de como minorias se enxergam nele, não só nas composições de cunho explicitamente político. “Tem muita gente que não entende o que eu faço quando falo de amor”, explica Baco, “eu venho desconstruindo muito a própria visão que as pessoas têm de mim com o tempo, eu acho isso muito necessário. Chegou um momento em que eu achava que eu estava só reafirmando a visão das pessoas de que o preto é violento, de que o preto é um cara agressivo, surtado e que pode te dar um soco na cara, ou que vai te roubar, vai ser bandido ou alguma coisa do tipo. Quando eu canto sobre amor, não é só sobre amor. Hoje, minha maior luta é pra normativizar as coisas, tá ligado? Para as minorias, quaisquer que sejam, normativizar as palavras, os próprios discursos e as próprias ações”.

A urgência da missão de vocalizar o oprimido encontra terreno fértil na inquietude do artista. Em suas músicas, ele mistura o legado de denúncia e conscientização do Rap com talento e uma dose certeira de boa vontade: “Tô tentando ser o mais didático possível. Bluesman é um disco que eu não rimei como no Esú, isso eu acho bem claro, é uma coisa que eu não tive vontade de fazer porque não era necessário, saca? Acho que as pessoas já entenderam qual é o meu poder de escrita e eu já passei por esse momento, queria alcançar novos timbres, novas melodias e fazer as pessoas sentirem. Não só com a palavra, mas também pelo canto, pelo que o Blues fazia as pessoas sentirem. Foi meio que jogar a cabeça ali para conseguir pegar as pessoas por outro lado. Por mais que não se esbanje técnica de escrita, é difícil cantar, é difícil ouvir essas letras. O Rap é muito preso em técnicas de escrita, tem essa coisa de você estudar etc. e tal. Eu me desprendi de tudo isso aí, fiz só o que deu vontade, saiu do peito e é isso aí, essa é minha verdade”.

Bluesman chegou em disco e chegou com um curta (que ele insiste em chamar de “interpretação audiovisual”), uma prova do trabalho espetacular (literalmente) e narrativo que Baco realiza – ele conta, inclusive, ter vindo a São Paulo para estudar roteiro. Simultaneamente, o lançamento em vídeo trabalha de maneira ainda mais clara seu conceito central: “Sempre tive essa brisa com o Blues, tanto é que no meu nome tem Blues (risos). Ele é importante por ser o primeiro ritmo a formar pretos ricos. Quando me perguntaram por que Blues tava no meu nome, é porque ele é uma entidade tão grande quanto Baco ou Exu, porque fez muito pelos negros. É um ritmo libertador, é os brancos sendo escravizados pelas vozes dos antigos escravos. Isso é muito forte, é o ritmo de quem sofria na mão dos caras, e o público é justamente quem fazia eles sofrerem. É meio que você sentar pra ouvir tudo de mal que você fez para uma pessoa e aplaudir no final. É uma vingança às avessas, é uma maluquice”.

Foto: Monkeybuzz

“Acho que Bluesman não é uma nova identidade pra mim, porque é uma nova identidade pra todo mundo que se vê fora de uma caixa. Eu tô explicando pras pessoas que, se elas se sentem livres, elas são Bluesman, saca? Não tem nada que prenda, não é a opinião dos outros que vai prender. Não é um disco, é um movimento. Se você acha que você não é o que os outros esperam de você, você é Bluesman. É o sentimento de querer liberdade. No fundo, ninguém quer ser preso na opinião de ninguém, ser escravo do outro. Eu pensei muito no conceito do Blues, no conceito da prata. Gosto muito de fazer teorias. Gosto mais disso do que fazer música solta, tá ligado? Você pode dizer muito com uma música, mas você pode mudar tudo com um projeto bem amarrado. Eu tenho uma preocupação sim com o impacto cultural no momento que a gente tá vivendo. Mas, antes de qualquer coisa, é pessoal. Meu bagulho é sentimento”.

É sim. É essa intensidade no vocal e nos temas, falando do ódio que sente e sendo “o preto mais odiado”; É o bom humor com que conversa enquanto bate o copo plástico na mesa com cara de quem já está pensando no que vai fazer em seguida – talvez uma música, talvez só um cigarro; É a falta de concentração para arrumar o relógio para o horário de verão porque há mais o que se pensar; É ser o cara que fala “disgraça” e “buceta” em um dos momentos mais românticos da música brasileira recente; É saber que, em um curtíssimo espaço de tempo, virou uma grande referência no meio musical de hoje no país; É ser do Rap e não ser também; É ser o Diogo Moncorvo da certidão de nascimento e ser o Baco Exu do Blues da capa do disco. É ele ter concluído a entrevista falando “você é a possibilidade das coisas que vão acontecer na sua vida” – “você é” ao invés de “eu sou” – porque sabe que o foco é tanto na primeira pessoa quanto no outro.

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MARCADORES: Entrevista

Autor:

Comunicador, arteiro, crítico e cafeínado.