Ao ouvir este segundo álbum de Guri Assis Brasil, me peguei pensando em questões variadas. As perguntas mentais iam desde “por que diachos um cara como este não está rico e sendo tocado em todo o país?” ou “seria Guri um representante de uma nova geração de subtropicalistas, um jovem Jorge Drexler, um novo Kevin Johansen, um Vitor Ramil revisitado?” e me dei conta de que, de fato, há uma imensa riqueza em termos de música popular sendo feita no Brasil e que ela está fadada a ser privilégios de poucos/pouquíssimos, algo não necessariamente ruim, pensando bem. Uma boa audição de Ressaca, este audacioso e sensível registro musical, dá esperanças acerca do futuro da música nestes tempos líquidos.
Cabe esclarecer o termo “subtropicalistas” mencionado aí em cima. Ele é usado para rotular artistas que, como Guri, são do extremo sul do continente, na região subtropical, mais precisamente da interseção entre Uruguai, Argentina e a região fronteiriça que ambos têm com o Rio Grande do Sul. Guri é de Santana do Livramento, quase Uruguai, portanto, tal afirmação faria sentido. Sua música olha para influências sulamericanas de forma necessária e revoltantemente inédita em artistas de sua geração, seguindo a triste lógica do brasileiro não olhar para seu continente do mesmo jeito que olha Europa e America do Norte. Ressaca é rico em sonoridades sulistas, de Reggaeton a Cumbia, só para mencionar dois ritmos que são bem populares por lá e que deveriam tocar muito mais nas rádios daqui. Guri não demonstra qualquer didatismo nisso, apropriando-se dessas referências de forma natural, afinal de contas, o sujeito tem mesmo essas influências. Mesmo nos tempos de Porto Alegre, quando integrava a boa – e sumida – banda Pública, sempre foi possível perceber que havia nele algo mais que um bom guitarrista presente.
O filtro de referências de Guri também tem certo tributo devido ao Pop urbano e contemporâneo de gente como Pélico e até Los Hermanos, mas sua identidade como bom cantor/compositor e guitarrista confere traços bem peculiares ao álbum. Há uma fluência especialmente no quesito melodia, propiciando uma audição pra lá de agradável. O single Casco, por exemplo, é sério candidato às listas de melhores canções nacionais de 2016, com seu arranjo de Reggaeton e belos fraseados (e solo) de guitarra. Além disso, uma letra de saudade alia metáforas de mar e ausência. É dessas canções que não comportam serem ouvidas apenas uma vez. É injusto, porém, destacar apenas esta em meio a outras oito belas composições.
A beleza do verso “faz um tempo que eu sonho que teria novamente um quintal e um pé de laranjeira para a gente regar” abre a triste e psicodélica Laranjeira, que posiciona o ouvinte diante do que será oferecido ao longo do álbum: tristeza e a sensação de “não estar” no mundo, algo que a gente sente muito mais do que queria/deveria, a noção de que estamos no lugar errado, na hora errada, provavelmente com gente errada. Mancha também pisa no Reggae latinizado para envergar uma melodia linear com arranjo em que o órgão pontua tudo e um clima triste-alegre se instaura. Rastro de Bala é um híbrido praia-frio novamente equilibrando-se na fronteira entre algum ritmo jamaicano só que desacelerado e com belas intervenções de saxofone ao longo do percurso.
Geada é melancólica, porém cheia de guitarras encrespadas e letra metafórica “a sombra negra do teu corpo clareia…”, dá um revestimento especial à paisagem noturna que ela evoca. Andorinha é beleza de tarde de sol no inverno, com bom trabalho de guitarras sutis que sustentam a voz entristecida de Guri. Rotina tem um refrão que tem lampejos de Alegria, Alegria, de Caetano Veloso em algum lugar e é outro desses espécimes de melodia bela/clima triste que Ressaca oferece gentilmente ao ouvinte, abrindo caminho para a ótima Vou Me Mudar Pro Uruguai, com título mântrico, muito repetido e cogitado nestes tempos ilegítimos que vivemos por aqui. Negra Alvorada encerra o disco num clima de sonho, alegoria e mais banzo com mar em versos “ela dizia que queria o mundo, ele dizia que queria o mar”.
Ressaca é um ótimo trabalho, cheio de camadas a serem desbravadas pelo ouvinte e retira de Guri os termos “promessa” ou “nova revelação”, colocando-o no terreno dos artistas já consolidados. Poucos conseguem isso no segundo álbum, mas tudo aqui é tão bem feito e belo que não há como ser diferente. Um dos grandes discos de 2016, fácil.
(Ressaca em uma música: Casco)