Resenhas

Robert Glasper Experiment – ArtScience

Produtor, pianista e visionário faz álbum maduro e certeiro

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Ano: 2016
Selo: Blue Note
# Faixas: 12
Estilos: Jazz, R&B, Funk
Duração: 70:42
Nota: 4.5
Produção: Robert Glasper

Não gosto muito de determinismos mas aqui não dá pra evitar: não há ninguém em atividade na música mundial que seja tão fluente nos idiomas dos ritmos negros norte-americanos quanto Robert Glasper. O cara é um monstro e dono de campo de deslocamento temporal pois é capaz de compreender o Jazz (sua origem é o piano) como poucos e, em instantes, dominar ambiências eletrônicas de batidas e levadas do Hip Hop, sem esquecer que a essência da música negra é o ritmo, o clima, a elevação do espírito pelos prazeres terrenos, algo que ficou bem em evidência nos anos 1960/70. Glasper seria então, com as devidas proporções respeitadas, um cara na mesma região de um Prince, caso este surgisse nos anos 00 e tivesse pelo Jazz a mesma inclinação que tinha pelo Funk. ArtScience, o terceiro disco de Robert à frente de seu grupo fixo Experiment e um bando de convidados, é, como dizia o profeta, uma porrada na cara. Simples assim.

O Experiment é um quarteto, além de Glasper nos pianos e teclados, conta com o saxofonista/vocalista Casey Benjamin, o baixista Derrick Hodge e o baterista Mark Colenburg. Juntos estes sujeitos conseguem abarcar o espectro musical contemporâneo e urbano desta música negra americana, sem preconceitos e exibindo técnica não-pentelha aliada a uma noção de que a improvisação teve, tem e terá grande papel no Jazz e no próprio Rap, uma vez que são estilos que nasceram como resposta ao engessamento cultural branco, numa nítida disputa de espaço e mensagem. Mas isso é papo para outra hora, para outro texto, quem sabe. A prova inconteste de que esta galera comanda o espetáculo está na terceira faixa, a impressionante Day To Day, um sacolejante espécime funky de outro tempo mas que não envelhece nunca. A entrada dos instrumentos, o clima da levada, os vocais aveludados e eficientes de Benjamin, tudo está no lugar. A dança é inevitável e é só o começo.

Há vários espécimes de canções jazzísticas ao longo do álbum. Híbridas com Pop, mais radicais no improviso, mas próximas da Eletrônica de rua, todas são eficientes. Há um épico, No One Like You, majestoso não só no tamanho – mais de 9 minutos – mas na capacidade de encapsular várias influências da banda ao mesmo tempo, fornecendo uma marca registrada e ampla do que essa gente pretende e faz. Cabe solos de saxofone, programações de teclados e percussão, bateria humana e baixo envolvente, tudo está aqui. Há também espaço para covers. Uma delas, a belíssima Tell Me A Bedtime Story, de autoria de ninguém menos que Herbie Hancock, recebe um tratamento com uso de vocoder por parte de Benjamin e um arranjo que lembra demais a versão que Quincy Jones fez para ela em 1978. O resultado é um choque temporal completo, com a canção soando atual por conta dessa saudável pouca fidelidade a parâmetros restritivos. No fim soa exatamente como uma versão que Glasper, que entrega um solo luminoso de Fender Rhodes, pilotaria e isso é a maior recompensa.

Pra não pesar a mão demais nas formas mais tradicionais, Glasper sabe usar a modernidade como poucos e sem abrir mão de um certo acento clássico que cai muito bem. Exemplo bom é Find You, toda nervosa com bateria expansiva, teclados rodopiantes e vocais com efeitos, que dão a impressão que estão a ponto de ceder espaço para algum blábláblá rapper no meio do caminho, mas permanecem até o fim, dividindo espaço com um solo de teclado que poderia estar numa gravação de Chick Corea de 1977. In My Mind é 100% Jazz, toda solos, malabarismos e beleza, especialmente o piano de Glasper e a bateria de Mark Colenburg, maior que a vida. Quando tudo parece tradicional demais novamente, entra Hurry Slowly, que parece uma canção Pop contemporânea, não necessariamente negra, que exibe arranjo linear, vocais sem surpresas e um clima que remete ao início dos anos 1980. Não faria feio no último álbum do saudoso David Bowie, por exemplo. As três últimas canções seguem neste mesmo esquema múltiplo. Há um semi-Reggae eletrônico em Written In Stone, uma “slow jam” setentista e sexy em Let’s Fall In Love, que poderia estar numa sobra de estúdio de Barry White e a outra cover, uma luminosa leitura de Human, sucesso oitentista do grupo inglês tecnopop Human League, surpreendendo o mais cético dos seres.

A certeza que ArtScience traz é que Robert Glasper está em evolução e repudia totalmente a acomodação. Mais que isso: ele aprende a cada dia a fórmula do equilíbrio em suas criações, dosando bem e procurando oferecer uma música cada vez mais plural e tradicional, sendo terrivelmente contemporâneo. Sim, a boa arte traz paradoxos e estes caras estão na dianteira de tudo o que temos neste setor atualmente.

(ArtScience em uma música: Day To Day)

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BOM PARA QUEM OUVE: Kamasi Washington, Prince, The Roots
MARCADORES: Hip Hop, Jazz, Ouça, R&B

Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.