Resenhas

Sabotage – Sabotage

Disco póstumo de um dos nomes mais importantes do Rap brasileiro valoriza sua memória e arte

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Ano: 2016
Selo: Independente
# Faixas: 11
Estilos: Rap, Hip Hop
Duração: 50:00
Nota: 4.5
Produção: Daniel Ganjaman, DJ Cia, Instituo, DJ Nuts

Discos póstumos são repletos de armadilhas. Feitos a partir de sobras e retalhos, podem muitas vezes não captar a real intenção de um artista falecido e sim a ambição de produtores e empresários. Complexa e recheada de expectativas, a obra pode cair em contos anacrônicos para poder fazer sentido quando lançada muito tempo depois. Felizmente, tais mitos e afirmações nem sempre são verdades dadas. Sabotage é um trabalho digno de memória e conhecimento, e vela a alma do mítico rapper com muito respeito.

Falar sobre Mauro Mateus dos Santos, mais conhecido como Sabotage, pode durar horas a fio através de livros, documentários ou pela sua voz em seu único disco oficial, Rap é Compromisso (2001). O rapper rompeu barreiras de gênero e evidenciou o Rap no “mainstream”, seja pela sua participação em filmes de alta relevância, como O Invasor (com trilha de “Maurin”) e Carandiru, ou por dialogar com artistas do Rock ao Samba; Para o rapper, não havia barreiras para o que seus sonhos e conhecimento permitissem. Sua figura, de fácil identificação popular (seja pelo seu discurso sobre a realidade das favelas – e sua vontade em afirmar que ali era um bom lugar construído com humildade – ou pela sua fácil locomoção entre diferentes classes sociais) se tornou um ícone dentro da música brasileira, não só pelas suas virtudes, mas também por seu talento nato.

Crônicas improvisadas sobre um cotidiano sofrido na favela do Canão, um dos epicentros paulistanos da desiguldade ao se encontrar em um quadrilátero de riquezas (Campo Belo, Brooklyn, Chacara Flora e Granja Julieta) às margens da avenida Águas Espraiadas, Sabotage encontrava no Rap o seu compromisso e o seu portal para outros lugares – a chance de poder dar uma vida digna a sua família. Antes, aproximara-se do crime como forma de prover aos seus familiares, até que os próprios traficantes e companheiros de trabalho afirmassem que ele não tinha jeito para aquilo e sim para a música. Seu caminho, tão rápido, o fez alcançar em pouco menos de três anos o status de uma celebridade dentro da música no país e ter um trágico fim como um cidadão tipicamente brasileiro, assassinado em sua cidade natal. Tal roteiro cinematográfico não seria nada se o contéudo de suas palavras e música fosse irrelevante, no entanto, treze anos após sua morte, seus versos ainda são ecoados no dia a dia de grande parte da população e ganham ares de clássico do Rap em Sabotage.

Faixas como Canão Foi Tão Bom com Negra Li, continuação natural de seu trabalho anterior e com uma letra profética – “Brooklyn, o que será de ti? Regar a paz eu vim, Jesus já foi assim/ Brigas trazem intrigas, ai de mim/ Se não tolim, zé povim quer meu fim/ Se esperar apodrece, se decompõe/ Se a gente faz, corre atrás, pede a paz, eles esquecem”-, denunciavam realidades ainda tão latentes e, por ora, esquecidas em uma parte relevante do Rap e Hip Hop brasileiros. Sua técnica, com letras rápidas e melodias que muitas vezes fugiam do seu estilo de origem, surgem aqui em faixas que realçam sua diversidade musical – Maloca é Maré, com o parceiro de longa data Rappin Hood, é o Samba que Mauro criaria inevitavelmente, enquanto Respeito é Lei é um misto de batidas com MPB, outro gênero muito apreciado pelo rapper. Em ambos os casos, independente da produção feita posteriormente à sua morte, o grande valor vem das palavras do rapper – seus versos batem fortemente no ouvinte e, mesmo com personagens diferentes, ainda representam a sociedade brasileira.

Ironicamente, a sua última composição foi Quem Viver Verá (mais conhecida como Favela é um Bom Lugar), que ganha a participação do rapper Dexter – sua letra está dentro das maiores composições de Sabotage e traz um relato cru da vida que Mauro queria fugir. Observador urbano, as histórias do rapper estavam longe da ficção, como pode ser visto em O Gatilho, outro grande momento do álbum. A produção digna faz com que as palavras do rapper possam ecoar por muito tempo – traz esperança nos versos de BNegão, realçando a amizade de ambos e o fato de termos um presidente negro comandando os EUA. Produzido em grande parte por Instituto e Daniel Ganjaman, Sabotage pode ter escolhas estéticas mais acessíveis que talvez não fossem desejadas em 2003 pelo próprio rapper, mas acabam servindo com louvor a sua memória.

Alguns momentos estão entre os melhores de sua carreira, como a ótima Sai da Frente e principalmente, a obra prima País da Fome: Homens Animais, continuação de País da Fome de Rap é Compromisso. Produzido pelo parceiro DJ Cia, uma das pessoas importantes na sua vida e produtor de RZO (grupo de Rap paulistano que deu as primeiras chances de Mauro mostrar seu valor nos microfones), tem uma composição que poderia virar um filme e trechos televisivos relatando a sua morte. Emocionante, coloca o rapper chorando em um dos versos e a arrepia ao trazer todo seu o leque de rimas, técnica e flow único. É o tipo de canção que sabe valorizar toda a história de um dos músicos mais importantes do Brasil e justifica a existência de um disco póstumo.

Talvez, os únicos deslizes fiquem por conta das duas faixas que abrem o trabalho: Mosquito produzido pelo antigo colaborador, Zé Gonzales sob a faceta de seu novo projeto, Tropkillaz, e Superar, com a participação do rapper norte-americano Shyheim (Wu-Tang Clan), soam um pouco fora de contexto. Principalmente a primeira, que coloca de forma anacrônica um Trap feito para as pistas de dança nas vozes de Sabotage – a faixa soa quase como um remix e decepciona por fugir do resto da ideia do Rap Clássico brasileiro entoada na obra. No entanto não tira o impacto do disco que tem entre seus maiores méritos o empenho de colaboradores antigos em fazer a palavra de Sabotage chegar para novas pessoas e presentar fãs órfãos de uma discografia extensa do músico.

O álbum póstumo, por fim, serve como uma homenagem digna e também como afirmação que ninguém conseguiu chegar perto do talento, personalidade e técnica do rapper do Canão. Se hoje vivemos uma época em que o Rap e principalmente o Hip Hop vivem seus momentos de maior popularidade no Brasil, algo difícil de se prever no começo dos anos 2000 e batalhado por Sabotage, vemos que os relatos sobre a revolta social de pessoas marginalizadas no nosso país ainda fazem tanto sentido. Por isso, o Rap era o compromisso de Sabotage – era a seu ponte de ligação com pessoas que desconheciam sua realidade. Ao mostrar sua vida, sendo ele mesmo, Mauro conseguiu construir um Rap de batalha em sua forma mais justa de redenção: através da arte. Em tempos em que o valor de uma rima vem do número de visualizações e compartilhamentos, Sabotage aparece novamente para dizer que sua arte tem muito mais significância ao exercer um papel social importantíssimo – sorte nossa que Sabotage nos faz vivê-la verdadeiramente por mais uma vez.

(Sabotage em uma música: País da Fome: Homens Animais)

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BOM PARA QUEM OUVE: RZO, Black Alien, Racionais MCs
ARTISTA: Sabotage
MARCADORES: Hip Hop, Ouça, Rap

Autor:

Economista musical, viciado em games, filmes, astrofísica e arte em geral.