Resenhas

Childish Gambino – “Awaken, My Love!”

Donald Glover atinge ponto alto de sua carreira musical com resgate do Funk setentista

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Ano: 2016
Selo: Glassnote
# Faixas: 11
Estilos: Funk, Soul, R&B, Psicodélico
Duração: 48:57
Nota: 4.5
Produção: Donald Glover, Ludwig Göransson

2016 foi um ano generoso para o multi-atarefado Donald Glover. Em sua vertente televisiva, despontou como roteirista e como ator principal do improvável (e aclamado) seriado Atlanta. Ainda como ator, também foi escalado para o próximo filme da franquia Star Wars, no papel do contrabandista Lando Calrissian. É na música, no entanto, que se encontra o despertar do artista, nossa maior surpresa. Enquanto o sucesso de Glover parecia apenas uma questão de tempo no campo da atuação (e nos talentos contíguos de roteirista e comediante), seu lado musicista, ao contrário, até agora causava certa desconfiança por parte da crítica. “Awaken, My Love!”, o terceiro álbum completo do artista, chega com uma guinada em sua trajetória musical, e como a consagração do mesmo nesse campo.

O fato do título se encontrar entre aspas explica muito do que o álbum realmente é: uma citação ao Funk norte-americano dos anos 70. Childish Gambino, embora visto tacitamente como um rapper, nunca manteve uma trajetória linear ao longo de seus trabalhos. É justo, por isso mesmo, considerar que Glover encara sua carreira de músico da mesma forma como a de ator. Em primeiro lugar, adota um codinome, um personagem, para apresentar-se. Em segundo, parece entregar-se aos diferentes gêneros musicais assim como muda de papel, seja com sua persona vinda do Rap, do Pop, ou a atual, do Funk. Por isso, “Awaken, My Love!”, o desvio mais radical de sua rota até agora, não é apenas um resgate daquela sonoridade, mas sim uma apropriação balizada assumidamente em bandas como Parliament-Funkadelic e afins.

Ao longo de sua carreira, erigiu sua imagem – e seu apelo – em torno de uma personalidade introvertida, perspicaz, levemente desajeitada e apática. Uma imagem que evoca algo de enigmático e, ao mesmo tempo, sincero. Esta talvez seja uma razões pelas quais “Awaken, My Love!” difere tanto, e se destaca, de seus antecessores: aqui, a desconfiança que Glover sugeria anteriormente é substituída por uma entrega e uma abertura raramente vistas em seu trabalho.

É por isso também que o álbum soa tão enérgico. Ao lado do produtor Ludwig Göransson, seu parceiro também nos projetos anteriores, Glover manteve a mira certeira na vibe que faltava em sua música. Me and Your Mama, a faixa de abertura, chega com o pé na porta e já entrega, de cara, uma das melhores músicas da carreira de Gambino. Sensual e agressiva, denota também o clima psicodélico que permeia o disco como um todo. Have Some Love é um hino inspirado em Can You Get to That, de Funkadelic. Redbone, outro ponto alto, retoma I’d Rather Be With You de Bootsy Collins. Baby Boy, uma homenagem ao seu filho recém-nascido, encontra-se no mesmo espectro de Just Like a Baby de Sly and the Family Stone. Sejam nestes nomes mais evidentes, ou mesmo em outros exemplos que ajudam a formatar o “estado da arte” que configura o que foi a música setentista, como Prince, Frank Zappa ou Jaco Pastorius, Childish Gambino conseguiu formatar uma síntese sedutora de seu vocabulário enciclopédico do Funk/Soul/Psicodélico.

Um fator que chama a atenção ao longo de todo o trabalho é a performance vocal. Abandonando o Rap de vez, Childish Gambino ainda experimenta territórios vocais livremente, sem se apegar a nenhuma linguagem específica. Ora grita com potência (Me and Your Mama e Riot), ora abandona o papel nas mãos do coral (Have Some Love), em alguns momentos canta com uma afetação exagerada (California), em outros apela ao autotune (Zombies), às vezes assume o R&B (Stand Tall) e ainda em outros casos parece cantar de modo cansado, quase desistindo (Terrified). Todas essas facetas endossam a ideia de que Glover atua em todos os momentos, se apropriando de uma linguagem vinda de outras épocas, tornando seu um território que antes não era. Este aspecto é reforçado pelo Afrofuturismo da capa, que exibe uma máscara nigeriana versão neon, em êxtase, e que lembra a configuração daquela exibida em Maggot Brain, de Funkadelic.

“Awaken, My Love!” se destaca, tanto em qualidade quanto em conteúdo, do restante da discografia de Childish Gambino por ser uma revitalização competente do Funk setentista, resgatando uma aura nostálgica e imprimindo sua marca pessoal no estilo. Recontextualiza o trabalho das bandas nas quais acredita e o torna vívido em plena atualidade.

(“Awaken, My Love!” em uma música: Me and Your Mama)

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Autor:

é músico e escreve sobre arte