É engraçado como Godasadog negou o seu destino intrínseco. Consolidando uma sonoridade experimental e Pop, o duo conseguiu em poucos anos de carreira definir com firmeza sua identidade, ao mesmo tempo que estabelecendo um espaço livre mínimo para que houvesse improvisos. Desde o EP Hoje, foi possível notar esse exercício de ida e volta constante às referências base do projeto, um ato bastante maduro. Entretanto, o apego aos palíndromos revelou que o que a banda criara nesses anos de estrada era justamente oposto à definição dessa figura de linguagem. Se Godasadog é a mesma palavra de trás para a frente, isto já não faz sentido quando ouvimos o seu novo lançamento, Escorpião, e esse paradoxo é algo fantástico.
Produzido à distância, em sucessivos encontros online entre São Paulo e Londres, o disco revela que diferentes formas de encará-lo mostraram diferentes percepções sensoriais. Talvez esse seja o grande objetivo da música experimental, mas é curioso como Godasadog tenta levar tal noção o mais fundo possível. Se encararmos o disco pelo seu lado Pop, logo notaremos que as quebras rítmicas e as melodias mais imprevisíveis nos puxam de forma brusca para padrões menos estereotipados do gênero. Por outro lado, pela ótica mais experimental, percebemos que não entramos tão fundo assim naquele mirabolante laboratório sonoro que algumas bandas tentam nos levar. Em resumo, é como se olhássemos para a mesma constelação de diferentes lugares do globo, mas sobrepondo ambas as percepções ao mesmo tempo.
É difícil tecer um olhar direto sobre as composições desse trabalho, mas este também é um dos grandes charmes. Festa, por exemplo, pode ser encarada com uma faixa psicodélica, quanto um Trip Hop minimalista. Espera , por sua vez, mistura uma batucada jazz/percussiva com um mantra hipnótico. As vozes harmonizadas acompanham alguns arranjos, mas tem humores diferentes: denso, em Trauma, e distópico, em Treta. Bairros talvez seja uma das composições mais maduras do disco, trazendo uma ambientação etérea e fina, com arranjos que misturam sutilmente o French House, um pouquinho de Trap e Pop. Escuridão tange climas mais sombrios, mas ao mesmo tempo astral, como se fosse o lado negro da lua. Por fim, Sargas encerra este universo multifacetado e plurisemântico com pads profundos e reverberados, uma nova forma de hipnose.
Escorpião é um disco de oposições e sinônimos. Ele traz diferentes ambientações, sentidos e humores tudo ao mesmo tempo. E contrário ao que se espera, não é caótico, é harmônico e bem produzido. São rumos que Godasadog já tinha pensado, mas agora põe em prática sua maturidade. Um trabalho interessante que revela as diferentes visões que podemos ter de um mesmo fenômeno.
(Escorpião em uma faixa: Bairros)
