Resenhas

Curtis Harding – Face Your Fear

Cantor norte-americano lança belíssimo álbum de Soul/Funk

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Ano: 2017
Selo: Anti
# Faixas: 11
Estilos: Soul, Funk
Duração: 41:15
Nota: 4.5
Produção: Curtis Harding, Danger Mouse e Sam Cohen

Há um bom tempo que temos artistas especializados em copiar os trejeitos da Soul Music clássica dos anos 1960/70. Às vezes trata-se de gente com conhecimento de causa, mas, em alguns casos, pessoas com precisão artesanal se limitam a reproduzir sonoridades e emular o espírito de um tempo que já passou. Não preciso nem dizer que o gênero musical em questão, o Soul – e o Funk, seu irmão mais novo – é coisa bem séria, com nascimento e desenvolvimento num período histórico de lutas e afirmação dos afro-americanos. Copiá-lo ou reproduzi-lo tendo em vista apenas os parâmetros estéticos é algo que não tem lá tanto valor. Pelo menos, não como encontrar uma forma de trazer esse idioma para o presente, atualizá-lo e torná-lo próximo da realidade de gente jovem e cheia de coisas a dizer. Num tempo em que o Hip Hop parece ser muito mais próximo do usual, gente como Curtis Harding surge como uma lufada de ar fresco nesta música negra estadunidense do século 21, justamente atualizando e repensando em formas com certa idade. Face Your Fear é um exemplo acachapante de êxito.

Produzido por Danger Mouse e Sam Cohen, além do próprio Harding, o disco traz uma sucessão de onze faixas na qual é muito difícil encontrar um erro. Tudo se conecta com o binômio criatividade/virtuosismo, com um baita time de músicos no estúdio, escrevendo e tocando sobre arranjos que não ligam para exageros vazios, privilegiando o que realmente importa, ou seja, melodia, letra e estrutura. Além disso, claro, há a voz privilegiada do sujeito, que voa entre falsetes e graves, como se não fosse preciso qualquer esforço para isso. E mais: um senso musical raro, que consiste em ter noção de que, mesmo sendo o vocalista e “dono” do disco, não se vai a lugar nenhum sem privilegiar a própria banda. Sendo assim, a impressão é de que estamos ouvindo o álbum de uma banda cascuda de Soul/Funk, algo que deveria ser fisicamente impossível em 2017, mas que se materializa aqui. Porque Soul precisa de uma ambiguidade bem vinda entre moderno e antigo, tradição e costume. E isso acontece aqui.

Harding já esteve na banda de Cee-Lo Green e com Outkast, circunstâncias que lhe conferiram quilometragem para forjar sua liga musical no ponto certo. Seu primeiro disco, Soul Power, de 2014, também trazia essa fusão entre novo e antigo algo que está muito mais equilibrado agora. Há belezuras típicas do estilo – arranjo de cordas, percussões, pianos – por todos os cantos, mostrando que Mouse e Cohen entendem do assunto. Um excelente exemplo desta interação é a faixa-título, que surge adornada por cordas que rodopiam num fim de tarde cinzento, enquanto a voz de Curtis mostra toda a malandragem de rua que se espera de alguém que esteja buscando redenção e o poder da palavra. Neste percurso há espaço para o aproveitamento de padrões mais clássicos, caso do molde à la Stax, 1968, usado em On And On, que parece gravada em algum lugar de Memphis, Tennessee, mas que surge atualíssima e redondinha.

A psicodelia é um terreno que Curtis gosta de visitar. Guitarras com pedais wah-wah, percussões e um baixo elíptico conduzem a lindeza que é Go As You Are, que coloca no chinelo vários bonequitos copiadores em atividade no mercado. Till The End tem potencial dançante/suarento para sacolejar até as lápides do cemitério mais sombrio, com guitarras e metais clamando por mais atenção. Need Your Love vai pelo mesmo caminho, com um senhor trabalho de baixo e um desempenho vocal especialmente bom de Harding, que se mostra, de fato, um senhor cantor. Dream Girl é uma canção com vocais em falsete que tem muito de bandas como The Rolling Stones, enquanto Welcome To My World mostra que o sujeito também tem familiaridade com faixas mais lentinhas e contemplativas. O fim com As I Am é hipnótico e maduro, típico de um cara que sabe onde quer chegar com sua música.

Curtis Harding já havia despertado a atenção da crítica em 2014, quando foi apontado como uma grande promessa para a música. Agora, três anos depois, ele é uma sólida realidade em apenas dois discos. Um baita artista, sóbrio, sério e incrivelmente competente está entre nós. Máximo respeito.

(Face Your Fear em uma música: Till The End)

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MARCADORES: Funk, Ouça, Soul

Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.