Resenhas

Mauricio Pereira – Outono no Sudeste

“Cantautor” paulistano lança olhar lírico e tristonho sobre sua cidade natal

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Ano: 2018
Selo: Tratore
# Faixas: 12
Estilos: Pop Alternativo, MPB
Duração: 46:08
Nota: 4.5
Produção: Gustavo Ruiz

Cá estamos novamente com o grande Maurício Pereira. Pós-graduado na sensacional big-band Os Mulheres Negras na virada dos anos 1980/90 e numa ótima carreira solo, o cantautor – como ele gosta de se definir – está lançando o seu sétimo disco solo, quinto autoral. Outono No Sudeste é mais um daqueles adoráveis feixes de canções literais, cheias de poesia fracionada, oblíqua, sem métrica, que Pereira despeja de tempos em tempos. Este novo álbum tem uma diferença muito expressiva em relação aos outros: a produção de Gustavo Ruiz, que revestiu as faixas com um frescor moderno-tradicional de música brasileira urbana e diversa, que caiu como uma luva nas composições de Maurício, modernas desde sempre. Aqui, sem invencionismos e respeitando uma tradição sutil na obra do artista, Gustavo mostra também que é um baita produtor.

Maurício é multiartista, com escopo que vai da dublagem à escrita, sempre com São Paulo revestindo suas criações – não a metrópole conservadora em muitos aspectos, mas a cidade moderna, com olhar para o futuro e cheia de pluralidades. Acima de tudo isso, o senso de humor. Entenda que isso não significa que Maurício componha faixas engraçadinhas ou humorísticas, ainda que a gente se surpreenda com versos imponderáveis como “Os passos das baratas distraídas pelo pátio, ratos adultos rangendo os dentes porque não sabem se conter ou não têm o que comer” (em Tudo Tem Ruído) ou “os pés, membros de uma sociedade secreta de caixeiros viajantes aposentados, paulistas ou maçons” (em Os Amigos ou O Coração É Um Órgão), a pena do sujeito é implacável e revela detalhes, sombras, penumbras urbanas que nos passam ou que, melhor dizendo, somos cegos de tanto vê-las.

Maurício é um observador detalhista e atento. Neste álbum, ele se entrega a uma visão madura, soturna e levemente triste da vida na urbe. Há muitos momentos em que é possível notar a dificuldade em lidar com o paradoxo do presente-que-se-tornou-o-futuro-do-passado, este looping temporal complexo, que nos fez chegar num tempo em que há muita facilidade para acessar obras de arte e, consequentemente, pouco valor atribuído a elas. É disso que ele fala em Não Me Incommodity, na qual pensa que a arte se tornou apenas um item na balança comercial. Não está totalmente errado. Em Mulheres de Bengala, por mais que o título aponte para alguma brincadeira ultrapassada transgênero, Maurício constrói um painel da paulistice urbana em meio a vai-e-vens pela Avenida Paulista, esquina com Rua Augusta. É quase um passeio pela tarde em meio aos afazeres diários de tantos, um viés de percepção.

O grande momento do álbum é a observação filosófica e existencial que Maurício faz do futebol em Quatro Dois Quatro. Auxiliado pelos filhos, Manuela, Chico e Tim Bernardes e com saudade dos tempos em que o esporte não era, para usar seu próprio ponto de vista, uma commodity, ele vai percorrendo as mil visões sérias e humanas para as quais o futebol serve como metáfora ou analogia e o compara à nossa própria vida – rápida, multidisciplinar, mas, acima de tudo, mecânica e sem tempo para a reflexão. É como ele confessou em entrevista recente: “sinto saudade do tempo em que o futebol permitia que o jogador tivesse tempo de pensar na vida”. É exatamente isso. Somos os jogadores, submetidos a regras que não questionamos, impostas por instâncias superiores e desprovidas de humanidade. “Jogar e deixar jogar. Trabalhar essa bola sem pressa”. Bingo.

Outono No Sudeste é uma dessas pequenas obras primas que vão passar batidas pelos ouvidos da maioria, mas, para consolar, serão lembradas nas listas de melhores discos de 2018. Na minha, pelo menos, seu lugar já é certo.

(Outono No Sudeste em uma música: Quatro Dois Quatro)

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BOM PARA QUEM OUVE: Arrigo Barnabé, Tulipa Ruiz, O Terno
MARCADORES: MPB, Ouça, Pop Alternativo

Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.