Resenhas

Marcelo Perdido – Brasa

Cantor e compositor carioca fecha quadrilogia de discos com chave de ouro

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Ano: 2018
Selo: Rosa Flamingo
# Faixas: 11
Estilos: Pop Alternativo
Duração: 41:43
Nota: 4.5
Produção: Rafael Castro, Mari Romano, João Erbetta, Nana, Felipe S., André Whoong, Laura Wrona, João Victor do Santos e Felipe Parra

A vida é cheia de quadrilogias, trilogias, sequências. Às vezes elas estão ocultas, noutras nos deixam cegos de tanto vê-las. Marcelo Perdido, reencontrado em solo pátrio após um tempo no além-mar, fecha sua sequência de translação musical, no caso, um disco para cada estação do ano. Com Brasa, o cantor e compositor carioca, agora habitante de São Paulo, fecha seu movimento em torno de um sol inspirador, que poderia ser o nosso próprio país, que, bem ou mal, é o responsável por todas as nossas movimentações nessa vida. Até mesmo pelas forças de repulsão. Física à parte, Perdido fecha seu ciclo como manda o figurino: um disco com conceito, parceiros, amigos, colaboradores, todos num time admirável de talentos, que reveste Brasa com uma aura irresistível.

Qual a ideia de Brasa? Fazer um disco de “Pop estranho”, nas palavras de seu próprio criador. O ponto de partida estético é o Brasil dos anos 1980, não o do Rock, mas o das paradas de sucesso, do início do Axé, do Pop revestido em estúdios com aparelhos novos e todo aquele som aveludado que saía dos sulcos dos LPs. Além disso, o Brasil que Perdido deseja trazer é plural, um conceito ainda engatinhante então, mas que já existia como realidade para a maioria esmagadora da população. Sendo assim, a sonoridade que sai de Brasa é um misto de estranheza e familiaridade, com momentos de estranho déjà vu auricular, como se ouvíssemos alguma coisa que nunca ouvimos, de fato, mas que, de alguma forma, já estava aqui há muito tempo.

Com um produtor por faixa e várias colaborações, Brasa não poderia ser um álbum uniforme. Certamente isso foi levado em conta por Perdido, daí a impressão de objetivo plenamente alcançando ao longo de suas onze faixas. Há momentos de estranheza quase antipop, como Cometa, que parece uma canção de Caetano Veloso possuída por Damien Thorne, o anticristo de A Profecia, em versão Semana de Arte Moderna de 1922, nem por isso desagradável aos ouvidos, especialmente em versos como “o aluguel subiu e o cometa desceu” ou no fecho “quero ser tropicalista na lista de melhores do ano da APCA, eu quero ser tropicalista quando o inverno ameaçar”. A faixa seguinte, Menos Pior, com a participação da doce nana, também tem pianos solenes e um clima apocalíptico que beira o sensacional, expresso em versos cortantes: “o que os meus filhos verão eu não sei”.

Brasa se mostra um disco diferente e agudo logo na abertura, com a faixa-título, que conta com a participação de Laura Lavieri e amplia seu poder de fogo na sequência, com a ótima e lírica Bye Bye Butterfly, que mistura efeitos de bateria eletrônica e um tom levemente belchioresco. A esquisitice Pop surge simpática no clima ambíguo de Falta, parceria com Felipe S, enquanto a belezura das grandes gravações pop oitentistas brasileiras surge como clima de estúdio em Tesoura Sem Ponta, com teclados intencionais, vocais de apoio e uma letra de amor estranha e real (“na ponta dos dedos uma tesoura sem ponta” e um surrealismo típico de alguém que pensa o mundo e não consegue evitar sua percepção. É como se o cantor oitentista Biafra tivesse feito pós-doutorado em Antropologia Social. No fim do álbum, outra mutação caetanística surge em Eu Sou Música, que tem participaçãodo Bazar Pamplona.

Brasa é um disco que dá alento ao ouvinte. Primeiro porque mostra que, sob a superfície lamentável do que se entende por música nacional, transmitida pela grande mídia, há gente pensante e desejosa de fazer algo que seja desprendido de cifras astronômicas. Segundo porque, ao fazerem isso, essas pessoas reafirmam seu compromisso com algo maior e mais importante, fornecendo sinais vitais para o país, talvez num de seus momentos mais necessitados. Brasa é quase compromisso, uma lindeza.

(Brasa em uma música: Tesoura Sem Ponta)

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BOM PARA QUEM OUVE: Transmissor, Wado, Pélico
MARCADORES: Ouça, Pop Alternativo

Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.