Resenhas

Mundo Livre S/A – A Dança dos Não Famosos

Banda traça um retrato caótico do país

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Ano: 2018
Selo: Monstro Discos
# Faixas: 12
Estilos: Rock Alternativo, Eletrônica, Mangue Beat
Duração: 38:01
Nota: 4.5
Produção: Zeroquatro, Leo D. e P3dr0 Diniz

“Respeito quem pensa diferente, mas acho que um artista com mais de cem mil visitas mensais de seguidores, como temos na nossa página no Spotify, tem uma responsabilidade política”. Este é Fred Zeroquatro, líder do grupo Mundo Livre S/A, dando a pista sobre como pensa sua banda e seu papel no mundo. Como ele mesmo disse, há quem discorde deste papel político, mas talvez essa hipotética pessoa não consiga ver o termo longe de sua conotação partidária, porque fazemos política o tempo todo. Os fãs do grupo recifense, um dos pilares do Manguebeat, sabem disso e esperam tal postura de Zeroquatro e seus rapazes. Podemos dizer que esse engajamento pouco ou nada mudou ao longo da extensa carreira da banda e não é diferente neste ótimo A Dança dos Não Famosos.

Além da verve incendiária, a parte musical precisa ser ressaltada. Não por coincidência, A Dança… é uma espécie de primo mais novo do incensado terceiro trabalho do grupo, Carnaval Na Obra, que completa 20 anos em 2018 e que vai ser revisitado na íntegra em concertos vindouros. A diversidade é o ponto de interseção entre os trabalhos, com a vantagem de que este novo disco apresenta um Mundo Livre muito mais experiente e senhor de si. As referências do mangue foram assimiladas como parte indissociável da música produzida pelo grupo e não são tão percussivas como da outra formação-alicerce do estilo, Nação Zumbi. Na receita de Zeroquatro há muita psicodelia, informação, levadas dançantes e um inesperado – e belíssimo – aceno a David Bowie e alguns usos malandríssimos de sampler, especialmente em trechos de discursos políticos.

A política na obra do Mundo Livre S/A é abordada de forma muito criativa. Veja, por exemplo, Eletrochoque de Gestão, que abre com uma fala de Michel Temerm devidamente distorcida, dizendo que não vai renunciar. Em seguida entra a letra com o verso “Marcela, solicite ao comissário, Nutella pra benzer o pão. Sossegue, venha ler nosso evangelho, louve a boa fé do eletrochoque de gestão”. Claro que a referência é à crueldade com que o termo “choque de gestão” é usado para se atribuir a cortes em programas sociais e medidas que vão prejudicar as camadas mais pobres da população. O uso de vocabulário elegante e próprio de empreendedores, devidamente desconstruído e inserido numa lógica poética própria, dá ao grupo total controle sobre uma narrativa amalucada e “meta-política”, onde tudo cabe. A partir daí, o mundo do Mundo Livre é uma porta aberta ao ouvinte. Outra canção cortante, Tóxico, fala sobre sexo, amor e a confusão entre ambos os termos e seus efeitos nas pessoas, com naturalidade e espontaneidade pouco vistas: “quero um novo beijo, espesso e concentrado, com pedaços de fruta e nutrição floral, que reidrate o couro e revigore o brilho facial”.

Mais adiante a política retorna como ironia bem vinda, na maravilhosa Meu Nome Está No Topo da Sagrada Planilha, com outro verso inegável, “louvado seja o juiz e a virgem santa que o pariu”. Aqui Zeroquatro mistura religião distorcida, manifestações políticas de rua, descaso de autoridades e uma duvidosa presença no “topo da sagrada planilha”, aludindo à corrupção. Outra canção, O Passo do Sangue: Na Vidraça, traz um trecho da entrevista de Leonel Brizola a Jô Soares, na qual o ex-governador do Rio fala sobre o mau uso de imagens sobre os arrastões na Praia de Ipanema no início dos anos 1990, questionando o uso ético da concessão televisiva, comparando-a, numa de suas frases típicas, a uma concessão de ônibus, na qual o motorista não pode se negar a prestar serviço a todos. Bailei de Calção Um Zero a Mais relembra o ouvinte do apreço da banda por Jorge Ben e exibe um vigor jovemguardista raríssimo na obra do grupo, enquanto a belíssima Special Manguechild, em homenagem a Vitor, filho de Zeroquatro, é uma balada psicodélica doce e amorosa, com ascendência inequivocamente bowieana.

A Dança dos Não Famosos é um trabalho intencionalmente caótico, totalmente sintonizado com os nossos tempos. É estilhaçado, violento, necessário sem abrir mão da musicalidade, do acabamento e da produção. Zeroquatro se confirma como um dos grandes letristas de sua geração – um clube tristemente com poucos participantes – e faz deste disco um item necessário para compreensão do Brasil de hoje. Para o bem e para o mal.

(A Dança dos Não Famosos em uma música: O Passo do Sangue: Na Vidraça)

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Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.