Resenhas

Josyara – Mansa Fúria

Cantora baiana redefine a geografia emocional de sua terra

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Ano: 2018
Selo: Tratore
# Faixas: 12
Estilos: MPB, Pós-MPB
Duração: 45:01
Nota: 4.0
Produção: Junix 11

Um aviso: a Bahia não é o que passa na TV. E mais: a Bahia não é só Salvador, é um estado enorme, cheio de nuances. Por exemplo, veja o caso de Josyara: ela é de Juazeiro, mesma terra de João Gilberto, bem perto de Petrolina, já no estado de Pernambuco. É, portanto, um sistema humano completamente diferente do que estamos acostumados a entender – dentro da lógica do senso comum – como “A Boa Terra”. E tem mais: Mansa Fúria, o segundo disco da cantora e compositora, é anos-luz distante do modelo musical que o mesmo senso comum nos impõe como sendo “baiano”. Há muito mais sutilezas, autenticidade, comunicação e transmissão de dados – no sentido estrito – que respondem a essa diversidade geoespacial e humana, que identificam o álbum de Josyara com informações muito próprias.

Produzido por Junix 11, do grupo BaianaSystem, Mansa Fúria traz a vida na beira do São Francisco – que divide as duas cidades, unidas por uma ponte – e toda a luta por um lugar ao sol na seara da música independente brasileira. Já disse outras vezes por aqui: quanto mais restrita à grande mídia a “música oficial” fica, mais a “música alternativa” se enriquece e oferece diversidade. Assim é com esta Bahia que a cantora mostra nas doze faixas autorais que compõem seu álbum de estreia. Há interior e cidade, sonoridades acústicas e elétricas/eletrônicas. Também há tradição e modernidade, m ansidão e fúria e muitas outras dicotomias, gerando essas adoráveis tensões que marcam as boas obras de arte. A própria gênese da música de Josyara é, em essência, uma mistura de Rock noventista – no sentido Pitty/Cássia Eller do termo – com sonoridades mais modernas e próximas do ritmo e detalhes regionais.

Como se não bastasse toda essa carga de sentidos e significados, há várias canções belíssimas ao longo do disco. Ha um épico dual sobre afeto, amor, partidas e chegadas em Nanã, que tem o dilacerante verso (“procuro meu caminho, bem na palma de minha mão/persigo meu destino, ouço a voz da minha mãe dizendo: filha, olha ao seu redor, entenda, tudo é como deve ser. Tenha coragem, cresça, procure um abrigo. Quando a tristeza cantar, desobedeça a dor”) como espinha dorsal. Em Rota de Colisão essas tensões que norteiam o álbum são colocadas no plano sentimental a ponto de colocar em risco a próxima existência “feito um cometa você chegou e me abraçou com todo o ardor” e abraçar a transformação consequente.

Novos planos de existência do amor são colocados naturalmente, como em Fogueira, (“tem uma preta muito linda e ela gosta de mim”). A faixa-título brinca com fraseados de violão numa proporção semelhante a trabalhos dos Novos Baianos, enquanto a melhor canção chega lá perto do fim do disco: Temperatura, que brada “calor só presta na beira de rio/calor só presta na beira de mar”, em meio a um arranjo que se divide em sutilezas e percussividade sutil, aberta em bateria marcial que surge quando pouco se espera. Pouco depois, Engenho da Dor brada: “não vamos voltar pros armários/não vamos voltar pras prisões”.

Mansa Fúria é emblemático dessa música moderna brasileira que, tristemente, ainda é privilégio de poucos/pouquíssimos. Talvez sua força e pujança esteja nessa luta por espaço, mas imagino que sua natureza de enfrentamento de um cenário se transforme, gentilmente, sem que percebamos, em doce identidade já indissociável. Uma lindeza.

(Mansa Fúria em uma música: Temperatura)

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ARTISTA: Josyara
MARCADORES: Ouça, Pós-MPB

Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.