Resenhas

The Knife – Shaking the Habitual

Duo sueco mexe com as estruturas da música e da sociedade realizando a sua obra mais ambiciosa e conceitual, um disco maravilhoso que deve ser aproveitado pacientemente

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Ano: 2013
Selo: Rabid
# Faixas: 13
Estilos: Synthpop, Eletrônico Experimental
Duração: 96:20
Nota: 4.5
Produção: The Knife
SoundCloud: /tracks/77244204

A Internet trouxe diversos benefícios à humanidade, mas se eu fosse considerar somente um, provavelmente escolheria a liberdade como maior ganho. A informação se tornou mais fácil e disponível, o que possibilita que qualquer um saiba o que está acontecendo do outro lado do mundo, desde política até o seu artista favorito. Entretanto, todos se tornaram mais expostos de certa forma devido a esta abertura, o que diminui o mistério e o gosto pelo desconhecido. Você quer saber tudo e agora. É no sentido contrário que The Knife sempre caminhou e algo que se consolida em sua obra mais experimental, conceitual e brilhante, Shaking the Habitual.

Este é o quarto álbum de estúdio do duo, composto pelos irmãos suecos Karin Anderson e Olof Dreijer, o primeiro em sete anos após um hiato indefinido em que não sabíamos se o grupo iria realmente voltar. Deep Cuts, de 2003, foi o seu primeiro grande álbum de sucesso comercial, principalmente atrelado a conceitos eletrônicos sendo executados de um jeito Pop. Heartbeats, o seu grande single, percorreu o mundo e se tornou um clássico instantâneo, sendo reproduzido por diversos artistas, como José Gonzalez. Já o seu disco posterior, Silent Shout, caminhava no lado mais sintético do som, sendo uma das grandes obras do ano de 2006, o que elevou ainda mais o status de cult e genialidade atribuídos ao Duo.

Uma aura de mistério era frequentemente demarcada tanto nas apresentações quanto em entrevistas do grupo, em que ambos procuravam se esconder atrás de máscaras, trazendo um ar dark e pesado às suas performances. Seu próprio som (que pode ser considerado um tanto sinistro por algumas pessoas) fez com que tudo que a Internet procurava demonstrar – informação aberta e disponível – fosse podada pelos próprios artistas e, consequentemente, aos fãs do grupo, os quais, entretanto, já sabiam como digerir melhor seu conteúdo. Para entendê-lo, era preciso vê-lo ao vivo, absorver suas letras e compreender o seu som. Neste meio tempo, entre Silent Shout e Shaking The Habitual, a vocalista Karin lançou o seu projeto solo, Fever Ray, o qual transportava os aspectos obscuros do grupo a uma situação ainda mais pesada e intimista.

Em entrevistas, algo que o grupo procurou, recentemente, se permitir mais, os músicos definiam que The Habitual fora feito para criar sons palpáveis a partir de métodos incomuns e, ao mesmo tempo, para que a sociedade pudesse se enxergar de outra forma. O álbum segue diversos pensamentos sociológicos do duo a respeito de seu próprio país, a Suécia, notada por aparentemente ter um padrão de vida elevado e igual a todos. Certo?

Logo de cara, em Tooth For an Eye, Karim diz: “Under the sun/ Look what we have got /And those who haven’t/ Bad luck”. Antes de um minuto a vocalista quase explode o seus pulmões de tanta emoção, em uma faixa intimista com instrumentos de percussão sendo colocados aos poucos. A raiva parece dominá-la, o som diminui e parece que tudo está bem. Não é uma canção facilmente digerida de cara, muita informação e sentimento são passados em pouco tempo. Antes do fim, há a denúncia “Border’s lies/ The idea of what’s mine”, sobre como todos veem o seu país.

A introdução da obra é só um exemplo de um disco que abusa do experimentalismo, mas sempre com um conceito por trás. Full of Fire traz de novo o uso das adoradas Drum Machines do grupo, sufocando e tirando o ouvinte de sua zona de conforto.”Sometimes I get problems that are hard to solve/ What’s your story? That’s my opinion/Questions and the answers can take very long”. Indicações de algo está muito errado e que precisa ser mostrado. Talvez seja devido esta necessidade que no vídeo para esta música, o grupo apareceu sem máscaras, surpreendendo todos. As partipações de Olof, abusando do uso de efeitos em sua voz e criando um ar andrógeno/não humano, trazem ainda mais terror e intensidade a canção. Sua letra tenta mostrar que as barreiras “invisíveis” entre homens e mulheres na Suécia, não deveriam existir.

Vale ressaltar a estrutura do disco também. Temos aqui 96 minutos de música. Não, você não está lendo errado e o álbum vale literalmente por dois. Seus lados são espelhados e temos em ambos faixas instrumentais curtas, que funcionam como interlúdios, como Crake e Oryx, outras que justificam o porquê de sua importância no meio eletrônico como a ótima Networking, sintética, agitada e pulsante como o gênero deve ser. Entre o primeiro e o segundo disco – não lado do LP, vale ressaltar -, a faixa Old Dreams Waiting to Be Realized traz 19 minutos de ecos, feedback e barulhos gravados com um microfone aberto durante as gravações. A tensão sempre percorre cada uma das faixas, e tudo isso é condizente com o que o duo costuma abordar em suas entrevistas. “Continuar fazendo música Pop é muito mainstream e óbvio para nós, queremos fugir disso”, disse uma vez Olof.

Apesar de mexer com as estruturas da própria música, ao fugir do que é usual, o grupo também demonstra uma capacidade lírica impressionante e que poucos conseguem realizar como estes irmãos. No final das contas, tudo que eles tentam fazer – se afastar do público e da mídia, abordar novos conceitos e papéis da música-, é realizado por pessoas humanas, com sentimentos que de uma forma indireta os aproximam de tudo que eles querem fugir. Without You My Life Would Be Boring é de partir o coração seja pela intrepretação de Karin e seu sotaque único, ou pela combinação musical entre uma percussão tribal e flautas.

Este aspecto é retomado no “mantra” realizado pelo The Knife em Raging Lung. São sons orgânicos, como uma bateria concentrada nos tons, e eletrônicos, no baixo marcado precisamente. Ou seja, uma união entre dois aspectos musicais que parecem formar o que é o grupo. Um sintetizador realiza a transição entre o verso e o refrão e, quando ele surge, tudo faz sentido e nos mostra o que é beleza musical. A balada Cherry on Top brinca com a Monarquia na Suécia, estrutura política antiquada que na visão do duo, tem uma realeza que vive bem e é, ainda, apoiado pelas camadas conservadoras do país. O interessante é que, ao longo de seus quase nove minutos de duração, nada é dito e a faixa parece ser um momento instrumental. Na sua última parte, a voz cortante de Karin diz poucos versos que fecham a base de uma faixa extremamente complexa.

Verossimilhança é um atributo que pode ser inferido a um sujeito ou assunto que possa representar a verdade, mesmo que dentro do seu universo. Neste mundo criado a partir do som do The Knife, no qual somos jogados a uma realidade sonora distinta e a temas cotidianos que muitas vezes nos forçamos a esquecer, tudo o que é mostrado é verdadeiro.Shaking the Habitual, mexe literalmente com diferentes camadas e estruturas da música e da vida cotidiana, e a troca é realizada por um percurso de quase duas horas. Ao criar um disco extremamente conceitual, experimental mas sentimental e moderno, o duo representa tudo aquilo que desejavam quando a obra foi idealizada. De longe, é a sua obra mais inacessível, na qual a paciência e a curiosidade devem predominar para que possa ser aproveitada ao máximo. Mas, talvez, esta deva ser a sua grande valência, recompensar os corajosos, bravos e interessados, os que passam por toda tensão e desconforto causados em alguns momentos no álbum. Assim como a vida, o disco não é fácil, mas quem disse que o caminho não pode ser prazeroso, apesar de sinuoso?

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Autor:

Economista musical, viciado em games, filmes, astrofísica e arte em geral.