Carne Doce e Luziluzia – Sesc Belenzinho e Casa do Mancha, SP

Novos goianos se apresentam pela primeira vez na capital e mostram que ao vivo são ainda mais surpreendentes

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Fotos: Fernando Galassi
Nota: 4.0

Enquanto grande parte dos paulistanos dividiu-se entre bloquinhos de carnaval espalhados pelas ruas e a rivalidade futebolística entre Corinthians e Palmeiras, dois representantes de música brasileira contemporânea mostraram suas forças e identidades musicais próprias pela primeira vez em São Paulo. Carne Doce e Luziluzia, dois grupos irmãos que compartilham integrantes entre si e com Boogarins, dividiram-se por menos de três horas em regiões distintas da cidade para se apresentar a um público que claramente queria entender estes novos goianos ao vivo e a cores.

Carne Doce, dono de um dos grandes discos do ano passado e lançado de forma de independente, introduziu o seu som de forma pomposa, pelo menos no local concedido a sua apresentação – Teatro do Sesc Belenzinho – e demonstrou que a sua música é ainda mais poderosa que a apaixonada relação da cantora Salma Jô e o guitarrista Macloys Aquino. Como um quinteto, a banda emociona como era esperado em suas canções mais confessionais, como Fetiche, Canção de Amor ou Adoração, mas se projeta com um Rock cosmopolita com diversas faces, todas figuras de uma panáceia sonora exuberante – MPB, Indie Rock, Psicodelia e Tropicália caminham misturadas aqui.

João Victor, guitarrista também de Luziluzia e produtor do disco de estreia,Carne Doce, pode ser considerado uma das grandes surpresas da apresentação ao transformar os seus timbres estridentes e cheios de delay em uma voz, por vezes, ainda mais poderosa que da simpatíssima Salma, claramente emocionada com a estreia na capital paulista e dona de uma capacidade de entonação e emoção ímpares. Passando por todas as suas canções, inclusive algumas de seu primeiro EP, Dos Namorados, Carne Doce demonstrou domínio ao vivo em um ambiente que claramente não era o própicio para sua apresentação – assistí-lo sentado, com a única possibilidade de bater os pés ou cabeça me parece pouco quando Passivo ou Fruta Elétrica tocam. Trata-se, aliás, de uma versão do cerrado ao espírito de Novos Baianos e poderia abrir o seu show, colocando a casa abaixo.

Se algo pode ser considerado certeiro ao grupo é que a estrada e o reconhecimento crescente o fará querer extrapolar suas faixas, se permitindo improvisar e experimentar mais ainda, fugindo do disco e se tornando menos rígidos com a obra que lhe dá retaguarda. Entretanto, a sinceridade e o cuidado com arte criada por Carne Doce impressionam mesmo quem desconhecia o seu som e aparaceu ao acaso no local, e devem alcançar públicos ainda mais diversos que os presentes em sua estreia. Esses músicos possuem verdadeiramente a possibilidade de encantar ao vivo pela primeira, segunda ou enésima vez.

Algumas horas depois, no coração da Vila Madalena, com suas ruas tomadas por foliões, Luziluzia faria o “segundo primeiro encontro” entre paulistanos e goianos, agora sob a face do Noise Tropical na Casa do Mancha. Obviamente, a presença de Raphael Vaz e Benke Ferraz, baixista e guitarrista de Boogarins respectivamente, chamaria a atenção de qualquer pessoa ligada à música contemporânea brasileira. No entanto, as comparações sonoras entre ambas as bandas param por aí. Talvez uma analogia a cores ajude a situar as diferenças sonoras entre as duas: enquanto Boogarins é amarelo, Luziluzia é vermelho com tendências ao laranja. Ambas situam-se num espectro de cores interligadas, mas são bastante distintas entre si.

A banda só se liga a Carne Doce pela presença novamente de João Victor e Ricardo Machado, quase outros músicos nesta formação. O primeiro flui novamente por echos, delays e reverb, mas todos salpicados pela distorção, enquanto o segundo exibe muito mais voracidade e ímpeto devido ao aspecto Shoegaze que envolve o grupo. Tocando faixas de seu EP 52 hz e do primeiro disco, Come On Feel The Riverbreeze, lançado pela Balaclava Records, além de uma inédita sem nome, Raphael Vaz mostrou que pode ser o bom líder de uma banda regada pela melancolia e sobriedade de sua voz acompanhada por um baixo igualmente melódico.

Quando a combianção de músicos e músicas culmina no tal Noise Tropical, com suas quebras de ritmo inesperadas, construções inteligentes e ótimos duelos de guitarra entre Benke e João, a banda caminha com vontade e sons próprios para se distinguir de todos os seus irmãos do cerrado, mostrando verdadeiramente sua identidade. Ao vivo na “casinha”, ambiente própicio para o barulho crescer e reverberar, faixas como Summertime, Cosmic Melodrama e Monólogo do Velho Louco são ainda mais impressionantes e nos fazem imaginar os futuros sons que podem vir de Luziluzia. Mais guitarras? Talvez toques eletrônicos? O barulho tropical caminha por outros lados, certamente.

Entretanto, certeiro foi quem escolheu o caminho do novo Rock brasileiro ao invés do pré-carnaval, sem se arrepender. Ao mesmo tempo, não podemos nos esquecer que, enquanto existir tropicalismo no Brasil, a música sempre passará pelo lado carnavelsco do nosso país, seja através de uma MPB levado adiante do conceito de somente belas melodias para se transformar em excelentes composições musicais de Carne Doce, ou seja através do barulho tropical de Luziluzia, caminhando para onde a psicodelia por aqui está aos poucos se tornando naturalmente uma cena, sem acordos prévios. A verdade é que, ao vivo, a cidade de São Paulo ganhou muito neste último domingo com ambas apresentações.

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MARCADORES: Show

Autor:

Economista musical, viciado em games, filmes, astrofísica e arte em geral.