10 anos de “Modo Diverso”, a epopeia queer-negra de Rico Dalasam

Uma década após o EP de estreia, uma pergunta ainda pode ser feita: quem, antes de Rico, celebrava meninos negros e gays no hip-hop?

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Fotos: @___carolcurti

Das batalhas de rima no metrô de Santa Cruz ao hit do Carnaval de 2017, a simples existência de Rico Dalasam é, por si só, um ponto de ruptura no rap nacional. Uma década após o lançamento de seu projeto de estreia, ainda é possível ser feita uma pergunta: quem, antes dele, celebrava meninos negros e gays no hip-hop? A resposta, até então, parece não existir. Em entrevista, o rapper paulistano revisitou o EP “Modo Diverso” para detalhar os bastidores de sua produção, além de destacar a importância do trabalho tanto para sua trajetória artística quanto para sua vida pessoal.

ACEITE-C

O fim de ano, em diversas culturas, simboliza o encerramento de ciclos. Para Jeferson Ricardo, aos 25 anos, no entanto, foi  nos últimos dias de dezembro de 2014, bem próximo ao Natal, que seu ciclo começou. Embalado por um trap dançante que sampleava “O Mais Belo dos Belos”, de Daniela Mercury, o clipe do single “Aceite-C” atravessou olhos e ouvidos do mercado fonográfico, tornando-se o primeiro registro histórico de um rap feito por uma pessoa LGBTQIA+ em solo brasileiro.

Segundo Dalasam, a música aconteceu em uma época turbulenta da sua vida em meio a troca de profissões, falta de recursos e certa insegurança sobre o futuro. “Naquele ano eu estava concluindo a graduação em Audiovisual. Era um momento delicado, porque eu tinha aberto mão da minha profissão anterior, que era cabeleireiro – uma carreira que, ao longo de 10 anos, me dava renda. Abri mão disso para adentrar nas atividades de trabalho no audiovisual. Na época em que gravei, eu era assistente de direção de arte e não tinha dinheiro, porque era muito mal remunerado naquela função”, desabafa.

Quando fiz ‘Modo Diverso’, foi a primeira vez que me senti contando a minha história — agora não pela moda, pela imagem ou pela estética, mas pela palavra, pela palavra falada, cantada. Me senti mais humano. E tudo isso em um lugar de legitimidade, não de legitimação pelo outro. Por ser legítimo por si só”

Rico já era figura conhecida nas batalhas de rimas realizadas no metrô de Santa Cruz, zona sul de São Paulo. Apesar de “Aceite-C” já circular amplamente — com registros de Rico apresentando a música em eventos, rodas e casas de show em seu canal no YouTube nos meses anteriores ao lançamento oficial —, foi com o clipe, vibrante e repleto de simbolismos, que o artista chamou atenção para o que já vinha construindo nas ruas.

As conexões com a música pop pareciam inevitáveis. A produção gestada por Filiph Neo para “Aceite-C” aproveitava a brecha aberta por artistas como Karol Conká, Flora Matos e Rincon Sapiência, em um momento de reformulação do rap no mainstream brasileiro. As primeiras influências da sonoridade do trap norte-americano eram assimiladas no Brasil ao mesmo tempo em que ganhavam nuances locais, refletidas nas experimentações em busca de um som que mantivesse o impacto, mas fosse festivo; que trouxesse conteúdo político, mas ainda assim animasse uma festa ao ser tocado.

Um trabalho que nasceu, sobretudo, da imaginação, como o próprio rapper define. A ausência, no rap feito no Brasil, de discursos e figuras que se assemelhassem ao que Rico era, em todas as suas particularidades,  foi o que o motivou a criar seu próprio universo. “Olhar para o rap e não ver a existência de alguém como eu, era algo que eu já sabia que, se tentasse fazer aquilo, poderia me sobrar mais cargas de desumanização somatizadas. Mas eu poderia encontrar, assim, um caminho”.

O hip-hop atualmente mostra-se aberto a trabalhos extremamente sensíveis de artistas como Frank Ocean e Tyler, The Creator — ambos assumidamente bissexuais. Mas a escassez representativa e a aceitação da homossexualidade dentro do rap foi tabu durante décadas. E talvez muito por isso Moonlight (2016) seja um filme tão importante para toda uma geração de meninos negros e gays. Não apenas por ter recebido uma estatueta de uma academia que mal arranha a superfície do impacto da obra, mas por apresentar a inúmeros jovens a imagem de um homem negro encorajando outro menino negro a compreender que ser gay não é algo de que devesse se envergonhar.

Ao se lançar de vez na música, Dalasam enfrentou um desafio singular. Em um cenário marcado pela ausência de referências negras e gays que escapassem de estereótipos caricatos, a tarefa de propor algo novo na cultura popular brasileira tornou-se um trabalho de construção imagética de pertencimento e identidade.

“Eu sou uma pessoa que, ao longo do tempo, precisei imaginar lugares e situações. Eu venho de um contexto de abandono parental. Eu precisei imaginar uma família, precisei imaginar com quem eu pareço, precisei imaginar para onde eu ia mirar, precisei imaginar para onde seria o meu ‘para frente’, já que eu não conhecia nada para trás”, diz.

Foto: Adriano Vizoni/Folhapress

“O panorama que eu queria criar com ‘Modo Diverso’ era mostrar como eu era e como eu via a questão do amor”

DESATANDO LÍNGUAS

A inadequação virou verso, o verso virou poesia, a poesia virou música e a música virou escudo. A intersecção desses mundos criaria uma terceira coisa: o EP Modo Diverso, lançado de forma independente em março de 2015.

O título de Modo Diverso revelava o propósito do mini-disco: traduzir tudo o que Rico já personificava em termos musicais, subvertendo a normatividade como padrão e propondo um novo modo de [re]existir e fazer música nesses espaços. Entre as ideias que guiaram o projeto estava a premissa do “fervo” como forma de combate; a diversão como afronta e certa urgência para dizer tudo o que precisava ser dito.

Isso ficava claro já na faixa de abertura do EP, “Não Posso Esperar” — um título altamente sugestivo —,cujo verso inicial tem Rico declarando : “Não posso esperar mais 10, 15 anos / pra dizer como eu amo.” E o amor foi realmente a força motriz do Modo Diverso. “O panorama que eu queria criar com Modo Diverso era mostrar como eu era e como eu via a questão do amor”, explica Dalasam.

Seja no tom romântico e apaixonado de “Deixa”, em que Rico narra um romance de uma noite, ou no amor-próprio presente em faixas empoderadas como “Riquíssima”, que traziam à tona uma alegria ímpar, característica do estilo despojado do rapper na época, criava-se uma atmosfera em que o afeto era capaz de permear e ocupar todos os espaços sonoros, sem deixar de ser potente e auto afirmativo.

“Filiph Neo é, sem dúvida, crucial para o acontecimento da minha carreira. Ele se comprometeu com a história que eu estava bancando, mesmo aquilo não sendo um recorte próprio dele. A gente se encontrou na música. A gente se encontrou na sensibilidade”

Precisava existir um contexto político de como eu me via, e isso eu fiz em ‘Aceite-C’. Precisava organizar como era minha expressão romântica, mesmo sem ter experiência no campo amoroso — e isso está em ‘Deixa’. E, por fim, precisava ilustrar com quem eu dividia esses pensamentos, que era com minha amiga, daí veio ‘Deise’”, esclarece.

Apesar disso, o rapper conta que recebeu muitos “não” antes de encontrar um produtor que topasse transformar seus poemas em música. Por intermédio de um amigo que chegou até Filiph Neo. E foi no home studio do produtor paulista, batizado de Mutasom, localizado no bairro da Vila Joaniza, que todas as sete faixas foram produzidas. “Filiph Neo é, sem dúvida, crucial para o acontecimento da minha carreira. Ele se comprometeu com a história que eu estava bancando, mesmo aquilo não sendo um recorte próprio dele. A gente se encontrou na música. A gente se encontrou na sensibilidade”.

O produtor paulista trouxe uma roupagem arrojada para a época. A forte presença de sintetizadores e hi-hats bem marcados, unidos às percussões características do gênero em uma segunda camada, apresentavam os primeiros testes do que viria a ser conhecido como trap-funk, uma mistura genuinamente brasileira. Além de outras conexões com elementos da música eletrônica e reggaeton, até o samba entrou nesse caldeirão de referências.

Ao ser perguntado sobre o que diria hoje a outros jovens negros e gays que talvez enfrentem questões parecidas com as que ele teve, Rico é categórico ao responder: “Conte sua própria história. Estude para você notar quando você está vivendo uma história que já foi escrita para você, e não a história que você mesmo pode escrever”. E finaliza: Quando fiz Modo Diverso, foi a primeira vez que me senti contando a minha história — agora não pela moda, pela imagem ou pela estética, mas pela palavra, pela palavra falada, cantada. Me senti mais humano. E tudo isso em um lugar de legitimidade, não de legitimação pelo outro. Por ser legítimo por si só”.

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ARTISTA: Rico Dalasam

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