15 discos recentes do jazz brasileiro

Veteranos e novos nomes em uma seleção que evidencia a força e a pluralidade do gênero por aqui nos últimos anos

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Fotos: Renan Oliveira

Há duas imprecisões no título dessa lista. A primeira, mais fácil de explicar, é o adjetivo “recentes” – aqui  selecionamos discos lançados entre 2019 e 2022. A segunda é a utilização de “jazz” para classificar o gênero de todos esses álbuns. E essa generalização exige um parágrafo.

Entre pianos, saxofones, gaitas, baixos, percuteria, trombones e seja lá o que entrar na equação, os discos listados carregam alguma tradição jazzística, se abrem à polirritmia, ao improviso e navegam por seus grooves apoiados em quebras harmônicas e melodias intrincadas. Ainda que, com o passar dos anos, o jazz “brasileiro” tenha sido convencionalmente associado ao jazz fusion, que vai de Hermeto Pascoal a César Camargo Mariano, há muitos jazzes dentro do jazz brasileiro. O que permite, inclusive, que alguns trabalhos sejam classificados simplesmente como música instrumental, embora entre os selecionados poucos encarnem algo como a ambient music, por exemplo.

E se o jazz por si só já é um gênero que se desmembra em uma infinidade de subgêneros, o jazz feito no Brasil ainda tem o trunfo de se misturar ao efervescente caldeirão da música brasileira – e aí as possiblidades se multiplicam. De veteranos a novos nomes, são 15 discos que evidenciam a pluralidade e a força do gênero por aqui nos últimos anos.

 

Jonathan Ferr – Cura (2021)

Entre os grandes lançamentos brasileiros do ano passado, o mais recente  disco do carioca Jonathan Ferr expande seu urban jazz, com passeios finos por neo soul, bossa nova e new age. Econômico e certeiro, o pianista comanda um repertório que, com naturalidade, sabe ser tanto minimalista quanto épico, em meio a frases melódicas assobiáveis – um prato cheio para beatmakers, inclusive – e harmonias substanciosas, comoventes. Há ainda as participações especiais de Jacques Morelenbaum em “Sensível” e Serjão Loroza em “Esperança”.

Trovão Rocha Trio – Sobre A Lua e os Passos (2022)

Lançado em abril desse ano, Sobre A Lua e os Passos é comandado pelo baixo de Trovão Rocha, músico catarinense que convocou Victor Bub (bateria) e Sebastian Cavallaro (sax alto) para construir um repertório atmosférico, experimental e suingado. As conversas melódicas entre Rocha e Cavallaro dão o tom do trabalho, enquanto a levada de Bud ornamenta de maneira sutil. São oito composições autorais e uma releitura de “Fado Tropical”, de Chico Buarque.

Eliane Elias, Chick Corea, Chucho Valdés – Mirror Mirror (2021)

Embora não seja exatamente uma celebridade por aqui, Eliane Elias é um dos maiores nomes do jazz brasileiro de todos os tempos. A paulistana, que constrói uma obra sólida e de momentos de brilhantismo desde meados dos anos 1980, se junta à dupla de peso formada por Chick Corea e Chucho Valdés. (O último disco de piano solo lançado por Eliane, inclusive, havia sido Solos and Duets, com ninguém mais ninguém menos do que Herbie Hancock, em 1995). E o resultado de Mirror Mirror é estonteante, com o jazz mais “clássico” dando boas-vindas a referências e grooves latinos (há até uma versão incrível de “Corazón Partío”, hit de Alejandro Sanz). São simplesmente três pianos dominados impecavelmente por três pianistas com muito a trocar uns com os outros. No último Grammy, Mirror Mirror levou o prêmio de Melhor Álbum de Jazz Latino.

Otavio Castro – Dale! (2022)

A união das gaitas diatônica, cromática e baixo executada pelo carioca Otavio Castro promove uma avalanche sonora que preenche o salão e abraça os tímpanos. Segundo ele, a intenção foi justamente criar uma orquestração de harmônicas na forma de big band. Camadas e mais camadas de som são sobrepostas no embalo de percussões sutis, em harmonias espaçadas, grandiosas, que incluem momentos de grande intensidade melódica. Ele vai do cinemático e épico petardo que é a faixa-título ao blues “Dungus”.

Lucas Bueno Dias – Epifonia (2021)

O primeiro disco de Lucas Bueno Dias é delicado e, ao mesmo tempo, virtuoso, e se aventura pelas perspectivas rítmicas, melódicas e harmônicas que apenas um piano – e um piano, apenas – é capaz de oferecer. Influências brasileiras, como samba, frevo e maracatu, entram em forte contato com ecos eruditos, além de passearem por temperos latinos e toques do jazz contemporâneo. São oito composições originais – destaque para belíssima e nostálgica “Para As Crianças” – e três arranjos para “Piano na Mangueira” (Tom Jobim e Chico Buarque), “Proezas de Solón” e “Rosa” (Pixinguinha).

Letieres Leite + Orkestra Rumpilezz – Moacir de Todos os Santos (2022)

A última obra do célebre músico, compositor e arranjador baiano Letieres Leites é uma fantástica homenagem a um dos grandes discos brasileiros de todos os tempos: Coisas (1965), de Moacir Santos. Acompanhado da Orkestra Rumpilezz, Letieres comanda um rearranjo brilhante de sete dos nove temas presentes no disco da década de 1960. O repertório resguarda a grandiosidade harmônica e melódica das composições originais, cujos ecos vão da bossa nova ao post bop, mas repagina a dinâmica e tonifica o caráter percussivo por meio dos atabaques do candomblé. Com participações de Marcelo Martins, Joander Souza, Raul de Souza e Caetano Veloso, Moacir de Todos Os Santos é uma reinvenção autêntica e emocionante.

Ana Azevedo, Augusto Mattoso e André Fróes – AMF (2022)

AMF é resultado da união entre Ana Azevedo (piano), Augusto Mattoso (contrabaixo) e André Fróes (percussão e bateria), músicos que já tocam juntos há mais de 30 anos. No primeiro disco do trio, cada componente dá sua contribuição para um repertório coeso, mas aberto ao dinamismo e à improvisação, com influências do free jazz e de avant-gard. Juntos, eles desenvolvem temas poderosos como “Entardeceu”; e separados, exploram viagens individuais com personalidade, caso de “Entremeio”. Em 2021, o trio se apresentou em uma live promovida pelo Blue Note.

Marcelo Monteiro – Deyeh (2021)

Empunhando o saxofone desde os anos 1990, Marcelo Monteiro é figura prestigiada e consolidada do nosso jazz e já tocou com nomes como Elza Soares, Gilberto Gil, Marcos Valle, Alceu Valença, entre outros. Em seu mais recente disco, ele segue a linha de trazer referências brasileiras para perto do jazz, do funk e de qualquer groove que a inspiração peça. Gravado remotamente durante a pandemia, Deyeh, capitaneado tanto pelo sax quanto pela flauta de Marcelo, foi considerado o sexto melhor disco de jazz de 2021 pelo portal Wicked Sound.

DDG4 – Rodopio (2019)

Em Rodopio, Débora e Dani Gurgel – mãe e filha – sintonizam melodias contagiantes unindo piano e voz, respectivamente, enquanto Thiago Rabello e Sidiel Viera recheiam a atmosfera de jazz contemporâneo à brasileira. Acompanhando as teclas, o scat singing gruda aos ouvidos e aproveita todo o potencial percussivo dos fonemas e sílabas da nossa língua. O DDG4 soa, de uma só vez, matemático e improvisado. E os eventuais e singelos versos que aparecem cantados, palavra por palavra, como em “Nó do Viajante”, também acatam essa espontaneidade mesclada à precisão.

Edu Sangirardi – Um (2022)

O primeiro trabalho autoral do veterano pianista, arranjador e produtor paulista Edu Sangirardi reúne 10 temas, com sete inéditas e três composições que já haviam sido lançadas em trabalhos da cantora Anna Setton. Grandioso, melodioso e tão brasileiro quanto jazzeado – como se percebe pela excelente “Maracutaia” –, o repertório contou com arranjos do maestro Tiago Costa, bateria por Cléber Almeida e baixo de Fi Maróstica, além de músicos prendados que aparecem em instrumentos como trombone, acordeom e flauta.

Antônio Neves – A Pegada Agora É Essa (2021)

Outro grande disco nacional do ano passado, o segundo trabalho do trombonista – e multi-instrumentista – Antônio Neves é jazz, é afrobeat, é música brasileira… É caos e calmaria, tempestade e bonança. A energia de “Simba” e da faixa-título se alternam com a beleza de “Lamento de Um Perplexo” e o crescente quase psicodélico de “Luz Negra”. Convidados ilustres como Hamilton de Holanda, Ana Frango Elétrico, Alice Caymmi e Léo Gandelman agigantam ainda mais um repertório no qual teclas, cordas, percussão e sopro não se digladiam – mas trazem complexidades à mesa para uma tradução simples e arrebatadora.

Amaro Freitas – Sankofa (2021)

Amaro Freitas dispensa comentários – e Sankofa, mais uma vez, comprova isso. O terceiro trabalho do pianista recifense amplia ainda mais as revoluções que ele comete ao longo das 88 teclas, seja pela explosão percussiva, subvertendo expectativas rítmicas, ou por dissonâncias magistrais inseridas em um mar de exuberantes melodias. Com Hugo Medeiros (bateria e percussão) e Jean Elton (contrabaixo) fazendo a cozinha perfeita para Amaro se esbaldar, Sankofa encanta por muitos motivos e revigora mistérios e belezas a cada nova audição.

Henrique Mota – Herança (2019)

Caminhando entre o smooth e um bebop mais lento, Herança apresenta um diálogo afiado entre Henrique Mota (piano), Ricardo Berti (bateria), Gibson Freitas (contrabaixo acústico) e André Levy (trompete). São seis temais autorais com o quarteto – destaque para “Influência” –, além de uma composição solo do pianista, justamente a faixa-título: a princípio espaçada, meio psicodélica, brincando com dissonâncias, até desembocar em um groove surpreendente e cativante. Em 2020, Henrique lançou seu segundo disco, Firmeza.

Beto Braga – Danae (2019)

O EP instrumental Danae é a estreia autoral do saxofonista paulistano Beto Braga, que convoca Ro Fonseca (guitarra), Sidiel Vieira (baixo acústico) e Salomão Soares (Rhodes) e Ricardo mosca (bateria) para um repertório de três canções, além de uma versão enxuta da faixa-título. São composições que atravessam um jazz de texturas suaves, com toques de new age e até de ambiente music, comandadas por frases acolhedoras do sax (alto e soprano) de Beto Braga. O título do trabalho faz referência a uma pintura de Gustav Klimt.

Guilherme Monteiro – Veias Abertas (2022)

Além do protagonista baixo elétrico, Guilherme Monteiro usa sua versatilidade para homenagear a América Latina e as religiões de matriz africana em Veias Abertas, de título inspirado no clássico de Eduardo Galeano. Violão de sete cordas, guitarra, viola caipira, atabaques e shake também são assinados pelo músico em um repertório que vai da tradição mais jazzeada (“Ruínas de Potosí”, “Vila Rica”) a temas mais amplos, instrumentais e de referências essencialmente brasileiras (“Terra do Sol” e Nunca Seremos Felizes”). Há espaço até para investidas enérgicas no jazz rock, como em “Tia Ciata”.

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