1969: O Ano Em Que David Bowie Fez Contato

“Space Oddity”, emblemático segundo álbum do cantor, faz 45 anos

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É um certo clichê jornalístico fazer pouco caso dos álbuns iniciais da carreira de David Bowie. Me refiro, especificamente, aos discos homônimos de 1967 e 1969, ambos anteriores a The Man Who Sold The World, de 1970, no qual aparece vestido de mulher na capa. Estas primeiras incursões do futuro camaleão no terreno da música Pop, ainda que não tragam a impressionante capacidade de reinvenção, originalidade e urgência, traços definitivos da carreira de Bowie em quase sua totalidade, mostram que o sujeito já sabia o que fazia. Space Oddity (1969), especialmente, tem, digamos assim, elementos de sobra para motivar uma aposta polpuda no futuro daquele jovem cantor e compositor, com lucro garantido para quem desejasse cravar o nome de um futuro astro do Rock. Talvez ainda não fosse possível vislumbrar que Bowie iria tão longe, mas, em 1969, as cartas de seu sucesso já estavam na mesa.

David Jones tinha 22 anos naquele ano. Era um jovem promissor, antes uma criança criativa, espontânea e… brigona. Viveu numa casa em que seus pais apreciavam artes em geral, primeiramente em Brixton, ao sul de Londres, depois em Bromley. Era bom aluno, admirado pelos professores de artes. Ganhou vários compactos dos pais e, segundo consta, “ouviu Deus” quando os primeiros acordes de Tutti-Frutti, na voz de Elvis Presley, começaram a surgir da vitrola. Fez parte de corais escolares, ganhou um saxofone de presente aos 14 anos. Um ano depois, em 1962, David já era integrante de uma banda, The Konrads. Ao lado dele, um certo George Underwood, com quem David brigara feio no pátio da escola por causa de uma menina. George desferiu um soco poderoso no olho esquerdo de David, que trouxe perda da visão e uma aparência de pupila dilatada permanente. Mesmo assim, os dois continuaram bons amigos.

Entre 1962 e 1967, David Jones tentou de tudo para fazer sucesso como cantor numa banda de Rock. Pulou de um conjunto para outro, nada dava certo. Com o sucesso do grupo americano Monkees, que tinha um vocalista seu homônimo, substituiu o sobrenome por Bowie, nome de uma marca de facas. Decidiu sair em carreira solo e lançou o primeiro álbum em 1967, que, assim como suas tentativas anteriores, não chamou a atenção de crítica ou público. O mundo passava por um momento de intensa mudança naquela época. Podemos fazer um exercício de física quântica social e afirmar, sem medo de erro ou imprecisão, que há muito mais que dois anos entre 1967 e 1969. Sendo assim, enquanto Bowie decidia deixar a música e entrar para uma escola de mímica, há que se ter respeito por essa informação. Na verdade, o jovem David adentrou o Circo, passando a ter aulas com o bailarino Lindsay Kemp, que fundara uma escola de dança e interpretação. Com ele, Bowie foi devidamente incentivado a explorar seus demônios interiores, aprendendo a lidar com as emoções e demais circunstâncias do eixo artístico-pessoal. Seja lá o que tenha sido ensinado/aprendido, um artista diferente emergiu deste período e, quando lançou uma nova canção chamada Space Oddity em julho de 1969, tudo já era bem diferente.

A canção era diferente de tudo lançado por Bowie até então. Com a inspiração do momento, ou seja, a missão da Apolo XI à Lua, o cantor e compositor conta a história de um personagem que se tornaria mítico, o Major Tom. A letra narra as experiências dele com a ida ao espaço e como isso afeta sua vida a partir dali. Ainda que o arranjo da canção não seja tão diferente do que era feito na época, há uma aura de novidade em torno de Space Oddity e que criou ao seu redor um escudo à prova de envelhecimento. Em quatro meses, Bowie providenciou as canções para o segundo disco. Lançou em novembro, ainda com pouco reconhecimento de público e crítica. Primeiramente homônimo, o disco recebeu o nome de Man Of Words/Man Of Music nos Estados Unidos e, três anos mais tarde, já com Bowie estourado no mundo inteiro, foi relançado como curiosidade arqueológica e rebatizado Space Oddity.

Como dissemos, este é o primeiro passo de David rumo ao posto que é só seu na tradição Rock. Ainda não há sinais de Ziggy Stardust ou qualquer outro personagem que ele viria a assumir mais tarde, mas na própria Space Oddity já é possível dizer que Bowie assume a persona do Major Tom. É um caso isolado no disco, uma vez que as outras nove canções são, digamos, convencionais. Há pequenos tesouros escondidos aqui: influências dylanescas em Unwashed And Somewhat Slightly Dazed, uma aura Folk adocicada em Letter To Hermione, feita sobre uma ex-namorada da época, que também é inspiração em An Occasional Dream. Há religiosidade amalucada em Wild Eyed Boy From Freecloud e homenagem à vida de pequenos furtos em lojas na simpática God Knows I’m Good. Há canção com nome de mulher na simpática aerodinâmica Janine e uma crítica atualíssima à doideira da época, na bela e literal Memory Of A Free Festival. E há a pequena obra-prima do disco, Cygnet Committee, em seus gloriosos 9 minutos e 35 segundos, nos quais é possível ver que o canto sofrido de Bowie, suas letras únicas e sua visão aguçada da vida o levariam adiante, tudo a bordo de um instrumental complexo e genial.

Este álbum não seria tão importante e promissor se não contasse com a participação de duas figuras: o guitarrista Mick Ronson e o produtor e multiinstrumentista Tony Visconti, ambos trabalhando pela primeira com Bowie. Os dois seriam decisivos nos próximos passos do artista, fornecendo o contraponto musical e novidadeiro para a proposta de David, a de, simplesmente, não se apegar a nada enquanto, ao mesmo tempo, enxergava a música e seu impacto artístico como parte de um conjunto de atitudes comportamentais maiores. Bowie sempre pensou grande, fora da curva, fora da caixa, fora das leis de mercado, oferta e procura. Continua genial até hoje e, se há algum ponto de partida para essa visão, podemos cravar que foi o seu segundo disco. Conheça.

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ARTISTA: David Bowie
MARCADORES: Aniversário

Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.