1980, a “Década Perdida” de Bob Dylan

Redescubra um pouco mais da extensa obra do compositor, em especial os anos 80, sua época menos celebrada

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Não adianta reclamar, Robert Allen Zimmerman é figura-chave para o entendimento do Rock como o conhecemos, ou melhor, como manifestação cultural típica do período entre o pós-guerra e os dias de hoje. Quando foi indicado ao Rock’n’Roll Hall Of Fame, em 1988, Bob Dylan foi anunciado por ninguém menos que Bruce Springsteen, que, em meio a um belo discurso, foi certeiro ao dizer que ele “possibilitou a compreensão intelectual do Rock, da mesma forma que Elvis propôs a sua compreensão física”. Em outras palavras, Bob teria, através de sua longa folha de serviços musicais e literários, oferecido uma perspectiva nova para o gênero, livrando-o da importante – mas rasteira – visão de ritmo meramente sexual. Pode parecer exagero ou ser impossível analisar algo que se tornou tão familiar ao mundo de hoje – o ritmo musical para jovens – como um gênero capaz de conter mensagem que não seja restrita ao âmbito da interseção entre ritmo e música, jogando alguma luz sobre o que é cantado. Dylan, no início dos anos 60, conseguiu despertar os ouvidos de seus fãs justamente por pegar algo emprestado de outros gêneros, no caso, o Folk e o Blues, que era o storytelling, a narrativa, a exposição de experiências.

Assim forjou-se o início da carreira musical de Bob Dylan, precisamente em 1962, quando lançou seu primeiro disco, homônimo, pela Columbia Records. Ao longo da década, álbuns como Highway 61 Revisited (1965), Bringing It All Back Home (1965), Blonde On Blonde (1966), John Wesley Harding (1968) e Nashville Skyline (1969) ajudaram a revelar ao público a dimensão da humanidade de Dylan, sobretudo na absoluta incapacidade dele mostrar-se um artista coerente com algo que seu público depreendeu ser sua total responsabilidade: apontar caminhos e sugerir rumos. Claro, há evidências nesse papel messiânico/místico em vários momentos da carreira de Bob Dylan, mas há, quase em mesmo número, eventos de inegável demonstração de tristeza, perplexidade ou confusão. Também não faltam exemplos disso, com destaque para a falta de coerência de Self Portrait (1970) e para a mágoa absoluta diante do fim do amor em Blood On The Tracks (1974), restando especial destaque em sua coleção de momentos humanos para sua inesperadíssima guinada rumo ao cristianismo, a partir de 1979. Poderíamos dizer que nada foi tão surpreendente em toda sua carreira até então, um forte indicativo de que Dylan, a exemplo de todos os seres humanos no planeta, ídolos do Rock ou não, eram passível de crises de identidade, ser afetado pela idade (chegava aos 37 anos, antecipando uma provável crise de meia idade) e resolver, em pouco tempo, mudar tudo, não importando muito as consequências disso.

É consensual nas análises sobre sua carreira ter o período compreendido entre 1979 e 1990 como o menos fértil, com discos especialmente massacrados pela crítica musical, como Slow Train Coming (1979), Saved (1980) ou, mais pra frente, Knocked Out Loaded (1986) ou Oh, Mercy (1989). Ao todo, Dylan gravou 12 álbuns, sendo três ao vivo (um deles em colaboração com os californianos do Grateful Dead), três totalmente voltados para as canções Gospel e outros seis trabalhos “seculares”, além de iniciar sua participação no supergrupo Travelling Wilburys, no qual gravou dois outros discos. Não há como colocar todas essas obras no mesmo nível de análise, geralmente de baixa avaliação, dadas as interpretações da crítica musical, que voltou seu olhar para os discos tendo em mente a cobrança de certa capacidade da obra de Dylan transcender o tempo. Foram cruéis especialmente com os tais álbuns Gospel Slow Train Coming, Saved e Shot Of Love. Os dois primeiros foram belamente gravados no Muscle Shoals Studios, em Sheffield, Alabama, terra de alguns dos mais importantes registros da Soul Music do sul dos Estados Unidos. Dylan teria se convertido após sofrer pesadas críticas referentes a seu filme Renaldo And Clara, que documentava em parte a sua famosa Rolling Thunder Revue, de 1975/76. Com uma mistureba de ficção em meio aos registros do show, o filme não foi poupado pela crítica americana. Dylan estava em uma desgastante turnê por Estados Unidos, Europa e Japão. Após episódios misteriosos, dentre os quais, o aparecimento de uma cruz de prata, que teria sido atirada ao palco em San Diego e que Dylan teria pego e guardado. Pouco se sabe dos detalhes, mas, em um período de quatro meses, ele estaria convertido ao cristianismo.

Bob Dylan nunca foi religioso, apesar de confessar várias vezes, assim como outro emérito judeu, Leonard Cohen, seu fascínio pelos mitos expostos na Bíblia. A conversão de Dylan refletiu-se imediatamente em sua obra. Slow Train Coming foi lançado em agosto de 1979 e, ao mesmo tempo que passou batido ou recebeu críticas dos fãs, aumentou consideravelmente a popularidade de Dylan entre os cristãos e evangélicos em geral. Há belíssimas canções no disco, como Gotta Serve Somebody, Precious Angel e Gonna Change My Way Of Thinking, além da produção do veterano Jerry Wexler, responsável, entre outras coisas, por gravar os maiores singles sessentistas de Wilson Pickett e Aretha Franklin, levar o Led Zeppelin para a Atlantic Records em 1968 e recomendar que Dusty Springfield gravasse Dusty In Memphis no ano seguinte, produzido por ele. Wexler também pilotou o estúdio para a gravação do segundo álbum desta “trilogia cristã” de Dylan, Saved, de 1980. Ainda que seja um disco inferior a Slow Train Coming, ele conta com a mesma banda de apoio, com bambas como Jim Keltner (bateria) e Tim Drummond (baixo), além da presença da guitarra de Mark Knopfler (apenas em Slow Train).

Shot Of Love, lançado no ano seguinte, já mostrava que Dylan dera mais uma guinada em sua vida/carreira. O conteúdo já não era totalmente formado por canções Gospel, e Dylan já concebera uma espécie de retorno às canções mais antigas de sua obra, as quais ele abandonara após o início da trilogia, sob a forma de nova turnê mundial. As críticas continuavam ruins mas ele parecia renovado diante delas. Seu disco seguinte, Infidels, lançado em 1983, trazia Dylan usando um solidéu na capa, com contracapa mostrando-o em Jerusalém. Musicalmente, Mark Knopfler estava de volta, dessa vez com novíssimos músicos de estúdio, como Sly Dunbar e Robbie Shakespeare, uma cozinha jamaicana de primeiríssima categoria, responsável, entre outros feitos ao longo do disco, pela dolente e quase-Reggae forma que o sucesso Jokerman ganhou. Aliás, para muitos, o primeiro contato com Dylan se deu através dessa canção ou, do disco de estúdio subsequente, Empire Burlesque, de 1985. Entre eles, Real Live, de 1984, importante registro ao vivo da tal turnê de reencontro entre Dylan e seu repertório mais antigo, saíam as canções religiosas, voltavam os temas seculares em interpretações voz/violão/gaita, que variavam do mediano para o sensacional, como Girl From The North County e Highway 61 Revisited.

Empire Burlesque, de 1985, trazia Tight Connection To My Heart, uma canção com potencial de sucesso semelhante a Jokerman, mas que fracassou. Seguindo o idioma da MTV, Dylan fez um belo clipe para ela, chegando mesmo a atuar – algo que ele nunca fez bem – em meio a uma história confusa com japoneses, Blues e roubo. Não fez o mesmo sucesso que a bela colagem de imagens de Jokerman, mas serviu para mostrar que Dylan estava em sintonia com a sonoridade dos tempos em que vivia. Ele já hava aparecido com destaque em We Are The World, soltando sua voz roufenha, mostrando todos os efeitos do tempo possíveis de percepção em seus quarenta e poucos anos. Era um jovem profeta ousado e cheio de manias.

A crítica continuava detectando essa característica hesitante como algo nocivo a transparecer nos discos. Empire Burlesque tinha passado rente ao tolerável por parte dos formadores de opinião, ainda que seja um belo disco. Ouvido com isenção e sem cobrança, é possível amar algumas canções como Emotionally Yours e Dark Eyes, sobretudo Tight Conection To My Heart, um dos grandes triunfos poéticos da carreira dele. Knocked Out Loaded, de 1986, ainda teve desempenho pior. Mesmo que Dylan tivesse se cercado de parceiros inusitados, como o ator Sam Shepard (com quem compôs a belíssima Brownsville Girl) ou gravado um cover interessante como They Killed Him (de Kris Kristofferson) ou feito o arranjo para You Wanna Ramble (Little Junior Parker), Dylan não escapou da sanha dos críticos. Seu sucessor, Down In The Groove (1988), também não escapou das resenhas negativas, ainda que tenha contado com participações ilustres de gente como Eric Clapton, Ron Wood, Paul Simonon, Grateful Dead. Mesmo com canções legais como Let’s Stick Together ou Silvio, Down In The Groove realmente padeceu de problemas nas sessões de gravação e talvez do grande número de colaboradores.

No mesmo ano, Dylan participaria do primeiro disco colaborativo com o Travelling Wilburys. Formado por Jeff Lynne, Roy Orbison, George Harrison , Tom Petty e Dylan, este supergrupo surgiu da vontade de velhos lobos do asfalto Rock de se divertirem. O primeiro disco, homônimo, trazia belezas como Handle With Care e causou sensação na crítica e no público. Talvez por isso fosse tão difícil entender a safra de canções ruins de Down In The Groove, o que aumentaria com a chegada de Dylan And The Dead, gravado ao vivo em 1988, lançado em 1989, justamente na excursão de divulgação de Down In The Groove, com a participação dos veteranos do Grateful Dead, banda que, sempre que possível, gravava versões viajantes para clássicos do repertório inicial de Dylan. Mesmo importante com registro histórico, o disco traz releituras frouxas para grandes canções como I Want You, All Along The Watchtower e Knockin’ On Heaven’s Door.

Os últimos capítulos sonoros desta década de Bob Dylan viriam sob a forma de dois discos: Oh Mercy (1989) e Under A Red Sky (1990). O primeiro seria a primeira colaboração com Daniel Lanois, discípulo de Brian Eno, marcaria a tentativa mais visceral de Dylan em mudar seu espectro sonoro, atualizar suas molduras musicais. Lanois vinha da produção de um milagre em forma de disco, Yellow Moon, dos Neville Brothers, aplicou a mesma paleta de cores impressionistas e econômicas na sonoridade de Bob Dylan, causando um impacto enorme. Canções como Political World, Everything Is Broken ou Shooting Star estão entre as mais belas criações do cânon dylanesco em muito tempo. A coesão musical é impressionante e Lanois seria o responsável pelo último grande par de discos de Dylan, Time Out Of Mind (1997) e Love Theft (2001). Mas ele não seria o encarregado do estúdio no sucessor de Oh Mercy. Com a produção de Don Was, Under The Red Sky veio à luz com péssimas resenhas. As canções talvez tenham grande participação no fracasso do disco: Wiggle Wiggle, 10000 Men, 2×2, todas com letras ruins, algo decididamente incomum na carreira do velho bardo. Uma singela pista acena para uma direção inusitada: o disco vem dedicado a Gaby Goo Goo, apelido da filha de quatro anos de Dylan na ocasião, o que poderia explicar alguns aspectos do álbum, que fracassou a despeito de contar com participações de gente como Slash, Elton John e George Harrison.

Dylan demoraria dois anos para retornar ao disco e, quando o fez, abriu mão de gravar canções próprias, ficando o repertório do próximo álbum, Good As I Been To You, restrito a faixas Blues e Folk de domínio público. Este trabalho iniciaria um novo ciclo na carreira de Bob Dylan, mais próximo dos primeiros anos, quando regravava canções de outros. De qualquer maneira, a obra dele permanece aberta a novas interpretações e já passou da hora de seus trabalhos “ruins” serem reavaliados. Ou abraçados como retratos fiéis de seus momentos de hesitação e dúvida, típicos destes raros artistas que confundem – e nos fazem confundir – suas vidas com suas músicas.

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ARTISTA: Bob Dylan
MARCADORES: Redescobertas

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Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.